Confira a troca de ofícios entre CRVG e SAF sobre o pedido de garantia referente ao aporte de setembro
Sábado, 11/05/2024 - 04:30
Não há experiência mais disfuncional na lei das sociedades anônimas (SAF) no futebol brasileiro do que a relação entre Vasco da Gama e 777 Partners. Clube associativo e investidor não se entendem em nada.

Para alguns dirigentes da administração atual vascaína, a companhia sediada em Miami é aventureira. A 777 vê tentativas de encerrar um contrato na marra, sem que qualquer cláusula tenha sido quebrada.

A 777 Partners tem 70% do futebol da 777 Carioca, empresa criada para administrar o futebol do Vasco. O próprio clube associativo ficou com 30%.



Um dos passos mais recentes na disputa ocorreu em 5 de abril, quando o Vasco enviou à 777 uma notificação, assinada por seu vice-presidente jurídico, Felipe Carregal Sztajnbok. Pediu uma garantia, válida no Brasil, de que o aporte de R$ 270 milhões, previsto em contrato para setembro deste ano, será feito.

Documento de auditoria externa e parecer da comissão fiscal do clube colocam em dúvida a sobrevivência do SAF no caso de o aporte não ser feito.

"Ciente de que se trata de valor expressivo e considerando que, em setembro de 2023, quando do depósito da segunda parcela, a 777 deixou de realizar o pagamento de forma pontual, forçando o CRVG [Clube de Regatas Vasco da Gama] a exercer o bônus de subscrição, o CRVG se encontra justificada e legitimamente preocupado a respeito de fatos levados a público pela mídia, relacionados à solvência e capacidade de pagamento do grupo econômico a que pertencem V.Sas", diz o texto do documento obtido pela Folha.

Por contrato, a 777 deve fazer aportes anuais. No ano passado, foram R$ 140 milhões. Há um prazo para isso, com carência de 30 dias. O dinheiro foi depositado dentro desse período extra.



Dirigentes do Vasco reclamam que o dinheiro só entrou perto da data limite e que foram feitos vários depósitos a partir de diferentes contas do grupo. Para a empresa, o contrato foi cumprido.

A 777 deu sua resposta ao clube por meio de Steven Pasko, um dos seus fundadores. Em versões escritas em inglês e português, ele afirmou ter ficado "surpreso" com o pedido feito pelo Vasco. E negou a solicitação de apresentação de garantias.

"Após consulta aos nossos advogados, entendemos que a garantia da terceira parcela de acordo de investimento se reflete no direito do clube de exercer o bônus de subscrição que, se exercido, diluiria a participação percentual de 777 no clube, sendo totalmente desnecessária qualquer garantia adicional", diz a carta.

Por contrato, se o aporte não é feito dentro do prazo, o Vasco tem direito a diluir a participação societária da 777, pegando de volta a porcentagem correspondente ao valor em ações da empresa que cuida do futebol.

"Isso não é garantia de coisa nenhuma. É consequência do inadimplemento. Se a 777 não aportar os R$ 270 milhões, as ações não vão valer nada. O patrimônio do Vasco será reduzido a pó. A garantia é justamente para impedir a concretização desse pior cenário", reclamou Sztajnbok, à Folha.

Consultada pela reportagem, a 777 não se manifestou.

Seus representantes, no entanto, consideram absurda a afirmação de Sztajnbok. Para eles, falar em "reduzir o patrimônio do Vasco a pó" equivale a dizer que a camisa, a imagem e a torcida do clube (4% da população brasileira, segundo a última pesquisa do Datafolha sobre o tema) não valem nada.



O contrato foi assinado em setembro de 2022, com a 777 comprando 70% do futebol da agremiação por R$ 700 milhões. A 777 assumiu esse valor da dívida vascaína, estimada em R$ 1 bilhão, e fez aporte imediato de R$ 120 milhões.

O clube reclama que dias depois a acionista majoritária pegou um empréstimo de R$ 50 milhões desse mesmo dinheiro para colocar em outras empresas do grupo. A 777 considera uma operação normal, feita em outros clubes. Sztajnbok diz que a quantia não foi devolvida ainda integralmente.

"Os empréstimos entre empresas do mesmo grupo econômico, especialmente de curto prazo, são instrumentos comuns de gestão de saldos. Pagamos integralmente o empréstimo ao clube depois de um período curto de tempo usando uma taxa de juros superior às taxas do mercado local", afirmou Pasko, em sua resposta à notificação.

Relatório externo feito pela Grant Thorton fala em capital circulante líquido (a diferença entre ativo e passivo circulante) negativo em R$ 196,8 milhões, prejuízo em 2023 de R$ 123,5 milhões e passivo a descoberto (quando o passivo supera o ativo) de R$ 601,7 milhões.

"Em 31 de dezembro de 2023, esses eventos e condições indicam a existência de incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional da companhia", diz a Grant Thorton.



Em parecer, a comissão fiscal do clube afirma que "segue a incerteza sobre a continuidade operacional do Vasco SAF".

"Das duas, uma: a 777 vive uma profunda crise de liquidez, ainda não justificada, ou realmente não tem dinheiro. Os dois cenários são péssimos para o Vasco SAF", observou o vice-presidente jurídico.

Nos bastidores, a empresa afirma não ver motivos para que se duvide da sua saúde financeira porque proporcionou ao futebol do Vasco algo inédito nos últimos anos: os salários do departamento profissional foram mantidos em dia mesmo com resultados ruins em campo e sem patrocínio máster na camisa.

Mas a imagem da empresa tem sido atingida por notícias de dívidas do grupo no exterior. A 777 também é dona de Genoa (ITA), Standard Liège (BEL), Red Star (FRA) e Hertha Berlin (ALE). É ainda acionista minoritária do Sevilla (ESP) e do Melbourne Victory (AUS).

A agência Bloomberg publicou que a companhia é alvo de processo por fraude, por ter supostamente feito um empréstimo de US$ 350 milhões (R$ 1,8 bilhão pela cotação atual) e dado como garantia fundos que não existem ou que não lhe pertencem. Segundo o site The Athletic, tribunal de Nova York revelou que a 777 é alvo de outros 16 processos que chegam a US$ 377 milhões (R$ 1,9 bilhão).

Em seu comunicado ao Vasco, a 777 diz que as publicações são de "canais de mídia especulativa e sensacionalista".

"Infelizmente, não podemos controlar o que é publicado na mídia sobre a nossa empresa. No entanto, levamos as falsas acusações muito a sério e tomamos todas as medidas cabíveis para responder às publicações caluniosas", diz o texto.

O pano de fundo da briga é o desempenho do time em campo. Apesar dos investimentos, o Vasco patina. Livrou-se do rebaixamento na última rodada do Campeonato Brasileiro do ano passado. Foi eliminado pelo Nova Iguaçu no Campeonato Carioca deste ano. Está na zona de rebaixamento do Nacional deste ano, com uma vitória em cinco rodadas.

No último ano, as receitas cresceram, segundo o conselho fiscal. Chegaram a R$ 364 milhões, recorde na história do clube. Mas as despesas também subiram e bateram em R$ 414 milhões.

No mês passado, a SAF demitiu de forma desastrada, via X (o antigo Twitter), o técnico argentino Ramón Díaz. Sua multa prevista em contrato era de R$ 30 milhões. A folha salarial é de R$ 20 milhões por mês, com contratações questionadas por conselheiros e torcedores. O veterano meia francês Dimitri Payet, 37, recebe cerca de R$ 1,5 milhão a cada 30 dias.



O vice jurídico vascaíno afirmou que, apesar de ter 30% das ações, o clube não é ouvido para nada e que a 777 toma as decisões de forma autocrática. Inclusive para escalar jogadores.

"Em tese, a SAF deveria ser independente, mas não é o que acontece na prática. O acionista majoritário interfere, escala jogador, dá ordem direta ao CEO. O Vasco, que tem participação de 30% no negócio, não é informado de nada. Nem sequer é consultado", reclamou.

Para a empresa, tomar as decisões é algo natural porque ela é acionista majoritária e tem maior número de integrantes no conselho de administração. Para a 777, se o Vasco quisesse tanto participar das decisões, deveria comparecer às reuniões do conselho, o que não tem acontecido.

"O Vasco esteve em todas as assembleias legalmente convocadas, inclusive na última, realizada no último dia 29", afirma Sztajnbok.

O último título de expressão do Vasco foi o Carioca de 2016.

Fonte: Folha de S.Paulo