Presidente da AMEA rebateu Resposta Histórica e sugeriu equipe do Vasco formada 'genuinamente por portugueses'
Domingo, 07/04/2024 - 04:41
A Resposta Histórica é um documento histórico para o Vasco e para o futebol brasileiro, que simboliza a luta contra a discriminação no futebol. Celebrada pelo clube e pela torcida vascaína a cada ano que passa, a carta completa 100 anos neste domingo.

No entanto, pouco se sabe que houve uma resposta à "Resposta Histórica" do Vasco. Disponível no Acervo Digital da Biblioteca Nacional, publicada no jornal "O Paiz", no dia 19 de abril de 1924, a réplica é escrita por Arnaldo Guinle, presidente da comissão organizadora da AMEA e patrono do Fluminense.

O documento rebate paragráfo por paragráfo do ofício enviado pelo Vasco e, no fim, afirma que alimenta a esperança que o clube, fundado por imigrantes portugueses, forme uma equipe "genuinamente portuguesa", por não haver outra colônia capaz de apresentar "qualidades desta nobre raça secular".



— Finalmente, dissemos a V. Ex. que embora estivessemos promptos a attender aos reclamos do vosso club a este respeito, alimentavamos a esperança de que, para o futuro, elle fizesse todos os esforços para constituir equipes genuinamente portuguezas, porquanto ao nosso ver, não havia em nosso meio outra colonia capaz de apresentar melhores elementos que a portugueza para uma demonstração sportiva das verdadeiras qualidades desta nobre raça secular — escreveu Arnaldo Guinle a José Augusto Prestes.



Após o Vasco vencer o Campeonato Carioca de 1923, em seu primeiro ano na elite carioca, com uma equipe formada por negros e pobres em sua maioria, America, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense romperam com a Liga Metropolitana e se reuniram para a fundação da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA).

A AMEA aceitou a inscrição do Vasco desde que o clube excluísse 12 de seus jogadores, sendo sete da equipe principal e cinco do segundo quadro. Em sua maioria, atletas negros e pertencentes às camadas populares da sociedade. A resolução da entidade colocava o Vasco, atual campeão carioca, em desvantagem em relação aos fundadores da nova liga.

Em trecho retirado do estudo "História das Ligas e Federações do Rio de Janeiro (1905-1941)", encontrado por um grupo de pesquisa da FAPERJ, liderado por Luís Manuel Fernandes, mostra o estatuto da AMEA e todas as suas restrições para "manter o futebol um esporte de elite".



O Vasco se recusou a excluir seus jogadores e elaborou a Resposta Histórica no dia 7 de abril de 1923. No ano passado, no aniversário de 99 anos da carta, o Centro de Memória do clube preparou um documento digital com vários elementos sobre o feito do Vasco — inclusive, com o ofício escrito por Arnaldo Guinle.

No documento digital, o Vasco afirma que esta parte do ofício da AMEA expõe um preconceito explícito com o clube, que era visto como um "somente de portugueses, sem negros," e que os dirigentes tinham interesse "em estigmatizar o Cruzmaltino como um clube contra as equipes brasileiras".



— Havia o interesse de que o Vasco da Gama constituísse equipes formadas apenas por portugueses, ao estilo de agremiações como o Luzitania Sport Club. Assim, do embate esportivo entre esse Vasco, que os dirigentes da AMEA queriam com os clubes grandes à época (que constituíam suas equipes apenas de homens brancos), dentro de uma concepção racialista, sairia a raça vencedora: portuguesa ou "brasileira".

Além disso, tal parte do documento da AMEA expõe o desejo de colocar o Vasco como um clube somente de portugueses, sem negros, e o interesse dos dirigentes da nova liga em estigmatizar o Cruzmaltino como um pária estrangeiro, que atuava contra os "legítimos clubes brasileiros" — traz o documento disponível no site do Vasco.


Um século atrás, o contexto social e histórico do Brasil era outro. Mesmo assim, a pesquisa apontou que, com o tempo, alguns periódicos se posicionaram contra os princípios da AMEA. A maioria dos artigos, no entanto, apenas noticiou, sem aprofundar, a desistência do Vasco.

Veja a resposta da AMEA sobre a "Resposta Histórica"

Rio de Janeiro, 17 de abril de 1924.

Exmo. Sr. José Augusto Prestes,

Accusando o recebimento do officio desse club, datado de 9 do corrente, que se nos chegou ás mãos no dia 11, prevalecemo-nos desta opportunidade para fazer algumas considerações sobre o que ali se diz a respeito da primeira e unica entrevista que tivemos com V. Ex.

Com referencia ao primeiro paragrapho, devo dizer que as resoluções divulgadas pela imprensa não podiam ter sido levadas ao vosso conhecimento pela leitura de jornaes, porquanto, na entrevista acima alludida, tivemos occasião de lêr integralmente o documento que foi posteriormente publicado, depois do que, demos sobre elle, todas as explicações necessarias. Não houve, portanto, como parece se inferir desta parte do vosso officio, sonegação de informações que uma vez conhecidas pudessem modificar a attitude do Club de Regatas Vasco da Gama.

Quanto ao segundo paragrapho, cumpre-me observar que a organização da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos já era conhecida de V. Ex., antes do pedido de filiação desse club, datado de 15 de março ultimo, porquanto os presentes estatutos são, por assim dizer, os mesmos que foram apresentados á Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, dos quaes V. Ex. tomou conhecimento, por isso sobre elle exerceu a sua critica no seio daquella instituição.

Ora, já nesse projecto os direitos dos clubs, actualmente fundadores da A. M. E. A. não eram os mesmos concedidos ao club por V. Ex. dirigido. Por esta razão, foi com surpresa que lemos o 2o paragrapho do referido officio, cujo conceito se nos afigura sobremodo tardio.

Quanto ao 3o paragrapho, o Club de Regatas Vasco da Gama labora em evidente erro, porquanto a Commissão Organizadora nunca poderia ter negado a quem quer que fosse o direito de defesa e isto mesmo foi declarado a V. Ex. pelo signatario do presente officio.

Declaramos então que uma vez filiado, o Club de Regatas Vasco da Gama entraria com um novo officio, demonstrando satisfazerem, os seus jogadores, a todas as condições legaes do amadorismo e que, uma vez provada a improcedencia da syndicancia feita pela A. M. E. A., as respectivas inscripções seriam concedidas. Dissemos mais, que se havia, naquelle momento, discrepancias entre as informações fornecidas por esse club e a syndicancia por nós realizada, a responsabilidade dahi decorrente recaia exclusivamente sobre o Club de Regatas Vasco da Gama, e que, como o mesmo acontecia aos demais clubs, tornava-se impossivel discutirmos todos esses casos particulares naquelle momento, dada a exiguidade de tempo que nos separava do inicio dos campeonato officiaes da actual temporada sportiva.

Achamos, portanto, que melhor seria organizar a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos para em seguida tratarmos desses casos particulares.

Finalmente, dissemos a V. Ex. que embora estivessemos promptos a attender aos reclamos do vosso club a este respeito, alimentavamos a esperança de que, para o futuro, elle fizesse todos os esforços para constituir equipes genuinamente portuguezas, porquanto ao nosso ver, não havia em nosso meio outra colonia capaz de apresentar melhores elementos que a portugueza para uma demonstração sportiva das verdadeiras qualidades desta nobre raça secular.

A isto retorquiu V. Ex. não ser possivel, visto como o regimen de trabalho pesado do commercio portuguez não permittia que os seus empregados deixassem as suas occupações para se entregar ao preparo indispensavel aos jogos dos campeonatos officiaes da A. M. E. A.

Eis porque, Sr. presidente, tomando conhecimento do officio de V. Ex., de 9 do corrente , lastimamos que a boa acolhida que mereceram os nossos conceitos por parte de V. Ex. não tivessem se traduzido posteriormente numa acção de solidariedade do vosso club, para com aquelles que souberam, nas primeiras horas de actividade nos sports terrestres desse valoroso gremio, estender-lhe a mão para, á sombra desta boa vontade, sympathia e solicitude, crescer na sua estima e consideração.

Permitta V. Ex., sem outro motivo, que me subscreva com toda a consideração e estima, o criado, attento e obrigado.

Arnaldo Guinle, presidente da Comissão Organizadora.


Fonte: ge