Natação Paralímpica: Camille Rodrigues superou compulsão alimentar para voltar às competições internacionais
Houve um tempo, não muito tempo atrás, que mulheres tidas como "bonitas", ou "sensuais", ganhavam da imprensa o rótulo de musa. Camille Rodrigues foi uma delas. A 'musa' da Paralimpíada da Rio-2016, no auge dos seus 24 anos, posou (vestida) para as páginas da Playboy e, depois, dançou na abertura do Fantástico.
Mas foi um vídeo do Criança Esperança que mudou sua vida. Estava no bar com amigos quando ligou o celular sobre a mesa para assistir a uma reportagem gravada com ela dias antes, em que ensinava uma senhora a nadar. Camille olhou para a tela, sabia que era ela no vídeo, mas não se reconheceu.
A mulher que já publicou mais de 4 mil fotos e vídeos em seu feed no Instagram, o que dá mais de um por dia ao longo de 10 anos, havia tempos não se via sem o próprio filtro. E o que aparecia na tela era uma mulher obesa, de mais de 100 quilos.
Camille ainda não admitia, mas as crises de ansiedade que se acentuaram na pandemia haviam desenvolvido nela também uma compulsão alimentar. Comia tanto que chegava a passar mal. E comia não por fome, mas para saciar a ansiedade.
Foi ali, no bar, que a nadadora teve um estalo. Sentiu outra fome, a fome de voltar a ser uma atleta. Fez terapia, cuidou da mente e do corpo, passou por uma cirurgia bariátrica, possivelmente de forma inédita no esporte de alto rendimento, e agora celebra a chance de nadar mais um Mundial Paralímpico de Natação. O torneio, em Manchester (Inglaterra), começa nesta segunda (31).
Tratada como "musa", Camille sempre foi mais do que um corpinho bonito. Disputou em 2011 seu primeiro Para-Pan, a versão paralímpica dos Jogos Pan-Americanos, e, após duas participações, montou uma coleção com sete medalhas individuais, sendo três de ouro e três de prata.
Queria ter ido também à edição de Lima, em 2019, mas não se classificou. Naquele momento, já tinha no currículo a participação em diversos clipes como dançarina, incluindo a abertura do Fantástico, dava palestras, tinha mais de 100 mil seguidores no Instagram, e conseguia se sustentar como influenciadora.
"Foi quando eu decidi dar prioridade para a transição de carreira. Estava cursando nutrição e até continuei na natação, mas só nas competições nacionais. Era mais um negócio de manutenção, já que eu era recordista brasileira dos 400m livre [na classe S9]. Treinava só para manter o título", explica. Mesmo se piorasse meio minuto suas marcas, continuaria sendo campeã brasileira.
Pandemia e compulsão
Confinada em casa durante a pandemia, morando com aquele que hoje é seu ex-marido, Camille começou a desenvolver compulsão alimentar: "Eu comia demais, até passar mal, e o peso começou a aumentar muito. Além de eu estar parada com os treinos, a elevação de peso foi muito grande, e eu tinha mal estar depois de comer".
Um episódio marcou Camille. Ela estava em uma festinha com amigos e devorou, sozinha, uma travessa inteira de pavê. Foi direto para o banheiro, onde passou mal em silêncio. Por bastante tempo, porém, negou que tinha um problema.
"Eu não conseguia me ver do jeito que eu estava. Hoje em dia eu percebo que o que eu via era o melhor ângulo para fazer foto, tirar vídeo. É a coisa das redes sociais, a gente posta o que a gente quer. Quando eu me vi sem aquele filtro que sempre me colocava, do ângulo que me favorecia, foi onde fui pega de surpresa. Como eu sempre me vi muito magra, eu não me reconhecia dentro do meu peso. Eu ia engordando e não ia sentindo", admite.
Solução
Foi depois que reconheceu que não estava fazendo um bom trabalho enquanto atleta, que afinal era sua profissão, perdendo o controle sobre seu próprio corpo, que Camille procurou ajuda.
Técnica de Camilla desde que ela era uma menina em Santo Antonio de Pádua, no interior do Rio de Janeiro, Lívia Prates já estava preocupada com a pupila e vinha sugerindo um retorno à natação de alto rendimento visando uma despedida no auge, como medalhista do Parapan de Santiago, talvez disputando mais uma Paralimpíada.
"Eu usei essa volta internacional como tentativa de tentar abrir os olhos, motivar, e mostrar a ela uma visão de fora, do que as pessoas tinham de visão dela. Por mais que ela seja influencer, tenha centenas de milhares de seguidores, as pessoas não diziam para ela o que estavam vendo. Então a ideia era que ela entendesse que aquele biotipo não servia para a natação. Eu também vi o Criança Esperança de casa, olhei para a televisão, e não a reconheci", conta Lívia.
Quando Camille caiu em si, topou o plano da treinadora. Faria de tudo para perder peso, recuperar a forma, e tentar se classificar ao Parapan. Mas, se já difícil para uma pessoa comum perder mais de 30 quilos de forma rápida, imagine uma atleta, que tem grande restrição de medicamentos e tratamentos por conta do código antidoping.
"A gente tentou diversas outras formas, diversos outros profissionais, foi de médico em médico. Conseguiria [perder peso]? Talvez, com o tempo, sim, mas por ser atleta e com um prazo predeterminado, a gente não tinha tempo para pagar para ver", relata a técnica. Foi daí que veio a ideia de uma bariátrica.
A cirurgia bariátrica reduz de forma significativa o tamanho do estômago, o que provoca um aumento da saciedade e a redução da absorção de calorias. O paciente come menos e retém menos calorias. E, com o tempo, emagrece. Mas, por ser um procedimento invasivo, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica só o recomenda para quem antes tentou outras abordagens terapêuticas e falhou.
Para se submeter à cirurgia, ainda no final de 2021, dois meses após o vídeo do Criança Esperança, Camille precisou passar por terapia. "Eu precisava estar preparada psicologicamente, porque você opera o estômago, mas sua cabeça continua a funcionar da mesma forma. Foi quando eu descobri que tinha compulsão alimentar, e aprendi a reconhecer os gatilhos."
Ela prefere não falar sobre esses gatilhos, mas explica que eles a faziam "descontar na comida". Desde então, passou a evitá-los. "Aí eu deixava de descontar na comida. Criamos uma rotina para não ter mais esses gatilhos", explica.
Ainda assim, a bariátrica era uma aposta arriscada. Lívia e a equipe multidisplinar que trabalha com Camille procuraram e não encontraram nenhum estudo científico sobre o treinamento de um atleta de alto rendimento que passou por bariátrica.
Nos primeiros meses, Camille perdeu sete quilos por mês, em média. No total, desde a cirurgia, já emagreceu 33 quilos. E, dentro do que Livia esperava, à medida em que ia entrando na forma esperada para uma atleta de altíssimo rendimento, Camille ia também ficando mais rápida.
Mas nenhuma das duas esperava que isso ocorresse de forma tão célere. "Ela progrediu muito rápido. Foi pegando o lastro esportivo, com a perda de peso, manutenção da musculatura, e acho que foi uma mistura feliz disso tudo. O objetivo era o Parapan e estamos indo para o Mundial, que nunca fez parte dos planos", admite Lívia.
A técnica dela entende que ótimos resultados até aqui são só a "cereja do bolo". Importante é todo o resto. "Não foi só um ganho de resultado, de tempo de natação, foi ganho de qualidade de vida, auto estima." Camila concorda. "Ja provei do que sou capaz. O que vier agora é lucro."
Fonte: Blog Olhar Olímpico - UOL