Se o futebol passa longe de ser uma ciência exata, o cenário brasileiro o torna ainda mais imprevisível. Hoje, às 16h, no Nilton Santos, Botafogo e Vasco se enfrentam em novo Clássico da Amizade envolvendo duas SAFs que fizeram movimentos parecidos e enfrentam os mesmos desafios, mas viram seus projetos de futebol dispararem em direções contrárias em 2023: para o alvinegro, a euforia da liderança. Para o cruz-maltino, a agonia da zona de rebaixamento.
O Botafogo chegou a sofrer com protestos durante o estadual deste ano, mas é o Vasco de 2023 quem experimenta de forma contundente as contrapartidas de um negócio que envolve a paixão de milhões de torcedores: com apenas duas vitórias em 12 jogos no Brasileirão e uma eliminação precoce na Copa do Brasil, a SAF cruz-maltina já foi alvo de protestos em sua sede e viu São Januário viver uma noite de violência na derrota para o Goiás. O cenário externo insustentável ajudou a cúpula de futebol a decidir pela saída do técnico Maurício Barbieri, uma das principais apostas da gestão da 777 Partners. Com William Batista de interino, o clube segue pressionado na busca por um novo treinador.
— Quando tivermos convicção, ele será apresentado — afirmou o diretor de futebol Paulo Bracks.
No Botafogo, John Textor, que na sexta-feira viu Luís Castro ir para a Arábia Saudita, conseguiu segurar o treinador em momentos de pressão e driblou as cobranças pela venda de Jeffinho ao Lyon, clube que também faz parte de sua holding. Agora, mesmo sem treinador (Cláudio Caçapa será o interino), o Botafogo vive um cenário diferente do rival, de estabilidade para projetar seu futuro no novo comandante.
— Se a bola entra, a gestão é ótima. Se não entra, está tudo errado. O futebol sempre vai ser assim. Mas se tudo passa por um time competitivo, é preciso estrutura para formar jogadores, criar processos eficazes para gastar com inteligência e trazer as pessoas certas para comandar, em campo e fora. O resto as SAFs já têm, a paixão, o desejo de consumir e a certeza de que o torcedor não muda sua preferência — avalia Armênio Neto, especialista em negócios do esporte e sócio-fundador da Let's Goal.
— O torcedor brasileiro vai ter que aprender, mesmo que na marra, a apreciar mais o jogo e a equipe do que apenas o resultado. A verdade é que não há espaço para todos brilharem e são poucos que terão sucesso. O Brasileirão deste ano tem alto grau de competitividade, que tende a aumentar com novas SAFs. Se tivermos 20 clubes ricos na Série A, quatro vão cair anualmente. Não tem o que fazer, é a lógica do futebol — adiciona Eduardo Carlezzo, advogado especializado em direito esportivo e e sócio do Carlezzo Advogados.
Dívidas e transmissão
Botafogo e Vasco têm perfis diferentes de liderança. Enquanto o cruz-maltino toma suas decisões por meio de um Conselho Administrativo, o alvinegro centraliza mais seus movimentos em Textor. Thairo Arruda, CEO interino do alvinegro, e Luiz Mello, CEO cruz-maltino, vêm mais abaixo na estrutura.
No futebol como negócio, há semelhanças. Ambas as SAFs já ultrapassam a casa dos R$ 100 milhões gastos com o elenco — nomes como Léo Jardim e Jair (Vasco) e Tiquinho Soares e Eduardo (Botafogo) são frutos desse maior poder de mercado, seja em custos de transferências ou em rendimentos mais altos. Os salários, velho problema do futebol brasileiro, são tratados como prioridade e estão em dia. Mas por trás dessa injeção de recursos está um desafio de médio a longo prazo de tornar clubes altamente endividados em sustentáveis financeiramente, ou seja, passar a gastar dentro do que se faz de receita, sem necessidades vitais de aportes de seus donos.
Hoje, alvinegro e cruz-maltino tentam liquidar suas dívidas cíveis e trabalhistas por meio do Regime Centralizado de Execuções (RCE), mecanismo criado pela lei da SAF que impede penhoras à medida que o clube organiza junto à Justiça uma fila de credores (pessoas ou empresas que têm valores a receber) e destina 20% de sua receita mensal a essa fila.
Mas o mecanismo tem falhas, já percebidas por Textor, que em janeiro ameaçou deixar de pagá-lo ao ver o clube não receber premiações, cobradas como dívidas por federações como a própria CBF.
— A lei da SAF está quebrada. Ela não funciona — disse o americano, na época.
Ontem, o Botafogo quitou uma dívida de R$ 6,5 milhões e acabou voltando ao regime.
Pedro Teixeira, especialista em insolvência empresarial, presidente de comissão de estudos da SAF da OAB-RJ, explica que, entre as várias falhas do mecanismo estão a indefinição do que se trata de receita de fato e as taxas de juros que podem vir a "aumentar" a dívida dos clubes.
— O RCE estabelece que a dívida vai ser atualizada pela taxa Selic, que aumentou muito. Quando o Botafogo ameaça desistir do RCE e negociar diretamente com seus credores, os gestores estão fazendo contas. Isso deve acontecer com o Vasco também. Se continuarem pagando na fila do RCE, provavelmente vai passar três anos e só vão ter pagado juros.
Enquanto tentam diluir as dívidas, os clubes miram o impulsionamento imediato de receitas. Botafogo, Vasco e Cruzeiro deixaram a Libra, um dos grupos que negocia pela formação de uma liga e venda de direitos de transmissão do Brasileirão, e negociarão de forma independente, algo visto com cuidado por Textor, empresário do ramo de mídia.
— São duas grandes injeções de receita acontecendo em pouco tempo, que vão dar aos clubes mais organizados a chance de colocar a casa em ordem — explica Armênio.
A estrutura também está na mira da dupla que se enfrenta hoje, mas em visões distantes: a 777 Partners, que aluga São Januário do Vasco associativo, mira a gestão do Maracanã. O Botafogo projeta o maior CT do Brasil, com 19 campos, numa cooperação financeira com o Lyon.
Fonte: O Globo