Valdir Bigode relembra carreira em Portugal e lamenta: 'A situação do meu querido Vasco está complicada'
Sábado, 27/11/2021 - 02:32
DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias das décadas de 80, 90 e 00s, marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.
VALDIR BIGODE: Benfica (1997)
Valdir de Moraes Filho não é homem para seguir os ditames da moda. 2021 é o mesmo que 1997, um bigode será sempre um bigode e Valdir será sempre Valdir Bigode.
O antigo avançado do Benfica é fiel ao bando capilar que lhe moldou o look e a alcunha. Imagem vintage, goleador kitsch, completamente alheado da nouvelle vague de tatuagens, brincos e cabelos pintados.
O tempo passa e Valdir está igual. 24 anos depois de sair da Luz, a alegria na voz e a leveza no espírito são os mesmos. Juntamos-lhes o olhar vivo, a bigodaça ufana e o agora treinador podia muito bem ser um cromo retirado de uma caderneta dos eighties.
Não se deixem enganar pela imagem folclórica. Valdir foi um dos bons avançados a passar pelo desgraçado Benfica daquela segunda metade dos anos 90. Fez seis golos em 13 golos, não aguentou a «bagunça» na Luz e voltou onde sempre foi feliz.
Os números não nos deixam mentir: 118 golos pelo Vasco da Gama, mais 30 pelo São Paulo e 53 pelo Atlético Mineiro, um mortífero ponta-de-lança.
«Cara, cheguei ao Benfica na hora errada e isso persegue-me até hoje.»
Valdir Bigode, o 137º passageiro deste DESTINOS no Maisfutebol.
VALDIR BIGODE EM PORTUGAL:
1996/1997: Benfica (13 jogos/6 golos)
Maisfutebol – Vemos que o Valdir não abandonou a sua imagem de marca.
Valdir – Não, de jeito nenhum. Continuo fiel ao meu companheiro de viagem. Prefiro até que me tratem por Bigode. Estes pelos são tão importantes que superaram o meu próprio nome (risos). Se a minha esposa me visse sem bigode teria um treco.
MF – Para si só faz sentido olhar ao espelho e ver-se de bigode.
V – Desde os 16 anos que ando assim. Tenho 49, é só fazer as contas. Era um menininho e queria parecer homem. Senti que seria útil para mim no futebol. E foi uma forma de ser reconhecido por todos, em todo o lado. Como digo sempre aos meus amigos no Brasil, o meu bigode chega e as portas abrem-se. Ele [o bigode] é mais famoso do que eu.
MF – Falemos de futebol. O Valdir construiu uma interessante carreira de treinador no Brasil.
V – Tirei recentemente a Licença A [nível máximo] e tenho experiência para treinar qualquer clube, grande ou pequeno. No Brasil ou em Portugal. Estou a aguardar um bom convite e vou-me dedicando aos meus outros negócios. Tenho, por exemplo, uma academia de futebol e uma propriedade que alugo para a realização de eventos. Vivemos entre Campo Grande, ao lado do Rio de Janeiro, e a Barra da Tijuca. Já treinei equipas do Rio de Janeiro, do Espírito Santos e estive em quatro períodos diferentes no Vasco da Gama. Fui, aliás, o técnico principal em algumas fases.
MF – Não correu bem no Vasco da Gama, o seu clube do coração?
V – Tive uma oportunidade, depois de quatro anos como adjunto. Estive em seis jogos como treinador principal, vencemos dois e empatámos quatro. Infelizmente, o clube depois optou por demitir-me. Faz parte do futebol. Gostaria de ter estado no clube noutra situação. O Vasco está agora na Série B e já sabe que não vai subir. Financeiramente isso é péssimo para um clube que já estava em dificuldades. A situação do meu querido Vasco está complicada.
MF – Olharia com interesse um regresso a Portugal, agora como treinador?
V – Para isso ser possível eu precisaria de ter aqui uma oportunidade num clube superior. A não ser que surgisse uma oportunidade num clube mais pequeno em Portugal, não teria nenhum problema. Tive uma passagem curta por aí, mas acho que deixei uma boa imagem no Benfica e ninguém pode dizer mal de mim. Gostaria de voltar a Portugal, claro, seria interessante. Ainda agora o Argel, que conheço bem, foi treinar um clube da Liga 3. Por que não o Valdir?
MF – Teve uma passagem de poucos meses pelo Benfica, mas ainda fez seis golos. E dois deles a um FC Porto que dominava o cenário em Portugal.
V – Tivemos dois jogos contra o FC Porto e um contra o Sporting. Comigo só perdemos um deles. Fiz dois golos em clássicos e isso é importantíssimo, até porque o Benfica vinha de uma fase em que perdia sempre contra o Porto, havia ali um trauma qualquer. Foi importante para a minha carreira, os golos ao FC Porto foram o meu cartão de visita no Benfica.
MF – O Benfica tinha muitos bons jogadores, mas a situação financeira era má. Foi por isso que não ficou mais tempo no clube?
V – Com certeza que sim. Eu falei com o presidente do Benfica, não me recordo do nome dele, era um senhor baixinho [Manuel Damásio], e a última foi depois do último jogo. Eu estava emprestado pelo São Paulo e o presidente pediu para eu falar com eles. Havia mais duas equipas interessadas: o Grémio e o Atlético Mineiro, e eu acabei por ir para o Atlético. Expliquei ao São Paulo tudo sobre o Benfica, mas o São Paulo disse que só me venderia. Não queria nenhum empréstimo. Na forma deles verem as coisas, os primeiros quatro meses seriam para eu me mostrar. O Benfica estava mal financeiramente e não teve possibilidades de me contratar. Entretanto, o Atlético Mineiro apareceu e pagou por mim. Cara, cheguei ao Benfica na hora errada e isso persegue-me até hoje.
MF – Que dificuldades encontrou nessa sua passagem pelo Benfica? Faltavam coisas básicas ao grupo?
V – Eu vi pouco do Benfica, a minha passagem foi rápida. Creio que foram três meses e meio. Vi coisas estranhas, mas até me custa falar disso. O meu objetivo foi adaptar-me rapidamente, comer bem, descansar e jogar. Foi o que eu fiz e as coisas correram-me bem. Sinceramente, sempre fui um profissional correto. Acho que deixei a minha marca, mesmo numa relação curtinha com o Benfica.
MF – Nos primeiros seis jogos marcou seis golos. A adaptação não foi um problema.
V – Sempre fui muito concentrado. Passei por grandes clubes na minha carreira. Tenho pena de não ter ficado mais anos no Benfica, confesso. Mas um jogador vive da parte financeira e as condições não eram boas.
MF – O seu treinador era o Manuel José. Tem boas recordações dele?
V – Era um homem brincalhão, tratava bem toda a gente. Era muito sério na hora do trabalho, mas brincava comigo. Aqui no Brasil dizemos que ele me sacaneava, zoava o tempo todo. Mas quando chegava o trabalho, atenção, cobrava muito. Falava comigo, sugeria movimentos. Recordo-me do que ele me disse no jogo na Luz, contra o FC Porto. Eu saí e ele chamou-me: ‘Anda cá, eu queria dizer que já gostava de ti, mas queria ver se os adeptos já te aprovaram. E estás aprovado, as pessoas já gostam muito de ti'. Lembro-me bem disso, o Manuel foi uma grande ajuda. Tinha muita personalidade, brincava imenso com o Amaral, com o Valdo, com o Ronaldo.
MF – O Valdir fez uma boa dupla com o João V. Pinto.
V – Não tivemos tempo para ficar amigos, mas entendemo-nos muito bem no campo. Tive números bons no Benfica e o João é um dos culpados. Era um camarada que tocava a bola, aparecia, driblava e por isso era um dos melhores futebolistas de Portugal na altura.
MF – Conviveu com o Eusébio nessa passagem pelo Benfica?
V – Estive em duas ocasiões com ele, só isso. Falava mais com o Shéu Han, o nosso diretor. Era a pessoa mais próxima do plantel. A atmosfera era ótima, apesar das grandes limitações.
MF – Em Portugal reencontrou o Mário Jardel. Poucos se lembram que jogaram juntos no Vasco.
V – Que memória (risos). Isso mesmo, o Jardel é mais novo e estava a aparecer nos seniores. Eu já era o titular da equipa e ele era novinho, até jogava poucas vezes. Certo dia ele foi titular e eu até lhe ofereci um dos dois golos que ele fez. Um foi de cabeça, claro. Depois o Grémio veio contratá-lo. É um bom amigo até hoje. O Jardel foi brilhante no FC Porto.
MF – O Jardel conseguiu fazer alguns jogos pelo Brasil. O Valdir fez mais de 100 golos pelo Vasco, mas nunca lá chegou.
V – Não sei qual o motivo, acho que nasci na época errada. Pensava que ia ter espaço, mas apareceram o Romário, o Bebeto, o Ronaldo Fenómeno, o Edmundo, e não tive oportunidades. Não lamento. Lamentaria se as opções não tivessem qualidade. Eles eram fantásticos, tinham mais talento do que eu e por isso tive de aceitar. Tinha a minha qualidade, mas o nível deles era muito alto.
MF – Qual era a grande diferença entre FC Porto e Benfica na sua altura? Houve uma diferença de 26 pontos nesse campeonato.
V - O FC Porto estava muito acima dos restantes. Creio que pela organização e pela força financeira, eles costumavam ter a força para segurar os seus jogadores. Não quero criticar o Benfica, mas basta olhar para o meu caso: eu fui emprestado, deixei uma boa imagem e no final da época o Benfica não foi capaz de me comprar. O Porto tinha essa força. Felizmente, pelo que eu leio, o Benfica está diferente e para melhor. Não basta mudar de treinador, como tantas vezes se faz no Benfica. A crise financeira às vezes é tão profunda que o ideal é apagar e começar do zero.
MF – No seu ano ainda conseguiu jogar a final da Taça de Portugal. Mas nem isso correu bem.
V – Nem aí, é verdade (risos). Fizemos uma boa partida, mas insuficiente. As finais são para ganhar. Entrámos muito mal no jogo e só acordámos quando estávamos a perder. O Boavista era muito forte, estava bem e tinha bons jogadores. Lembro-me do Nuno Gomes e do Sanchez. Nós aí tínhamos o Valdo, o Amaral e o Calado no meio-campo, se não me engano [certo] e depois o Edgar e o João [V. Pinto] comigo na frente. Tínhamos qualidade para fazer muito mais. Teria sido maravilhoso conquistar um troféu no Benfica.
MF – E na baliza estava um dos melhores de sempre.
V – O grande, grande Michel PreudHomme. Eu era menino e ouvia falar muito dele. No Benfica ele já tinha quase 40 anos, mas era um profissional exemplar. Posso dizer, com orgulho, que fui colega de equipa do Michel.
MF – Qual foi a história mais engraçada que viveu em Portugal?
V – Eu prefiro lembrar-me do período fantástico que vivi aí. Morava num hotel ao lado do Zoo, acordava e via o elefante ao longe. Ligava à minha mulher e dizia isso: ‘amor, acordei e já estou a ver um elefantinho'. Gostei tanto que levei a minha família para Lisboa, mesmo para o hotel. A nossa ideia era ficar mais anos, o clube era fantástico, o país maravilhoso. Fantástico, só posso agradecer a todos os que trabalharam comigo, mesmo com todas as limitações que o grande Benfica tinha na época.
Fonte: Mais Futebol