Hoje no Bayer Leverkusen, Paulinho fala sobre início no Vasco e intolerância religiosa
Domingo, 14/11/2021 - 01:36
Era dia 22 de julho de 2021, uma quinta-feira, estreia da Seleção Olímpica nos Jogos de Tóquio. Paulinho, o rapaz de 21 anos, comemorados em julho, formado no Vasco da Gama, começou a partida no banco de reservas. Nos acréscimos do segundo tempo, o carioca da Vila da Penha fez o último gol do Brasil sobre a Alemanha, sacramentando o 4 a 2. Um golaço. Mais do que o gol, chamou a atenção a comemoração em que o jogador simula um arco e flecha.

Era o simbolismo com Oxóssi, orixá de cabeça (protetor) de Paulinho, que é adepto das religiões de matriz africana. O orixá caçador tem a quinta-feira como seu dia na semana. Coincidência? Foi também em uma quinta a convocação para os Jogos. Em um ambiente futebolístico dominado por cristãos evangélicos, o gesto do camisa 7 era um grito contra o racismo religioso. Na política, na religião, diversidade e, claro, futebol, Paulinho não se omite. Craque.

Gol contra a intolerância

"A estreia [nos Jogos] foi em uma quinta-feira, que é o dia de Oxóssi na semana. O dia da convocação foi uma quinta-feira e da estreia também. Então já tinha em mente que faria isso. Nada pensando em ser impactante da forma como foi. Fiquei surpreso, uma surpresa boa. Mostra a força que a nossa religião tem, apesar de não ser tão exposta por pessoas públicas. Mostrou que a gente pode cultuar da maneira que quisermos, combatendo os preconceitos, o racismo religioso por causa do histórico de como nosso país lidou com a religião e com a cultura africanas".

"Foi um momento natural. Se você pegar a história, tudo que os africanos escravizados faziam era demonizado, especialmente a religião que eles cultuavam e trouxeram para o Brasil. A importância que eu vejo é representar as pessoas. Até mesmo pessoas públicas que não tinham coragem de expor me mandaram muitas mensagens de apoio".

'Macumbeirinho'

"Ainda estou aprendendo muito. Não sou como minha mãe, tia, avó, que têm mais conhecimento da religião. Sempre tive curiosidade por vê-las cultuando. Cansei de brincar em casa dançando alguns pontos [músicas] de macumba. Eu era mais novinho, e minha irmã me chamava de macumbeirinho. Quando fiz 16 anos, fui iniciado. Fiz o meu assentamento [representação do orixá no espaço físico que cada iniciado possui] e comecei a vivenciar mais de perto. Mas eu já tinha frequentado terreiros de umbanda. Sempre estava muito presente na minha família. Hoje poder representar as pessoas naquilo que eu faço e pratico me deixa feliz".

Romário e Edmundo

"Quando meu irmão nasceu, meu pai era fã do Romário. Ele estava no auge. Tinha sido campeão da Copa do Mundo, melhor do mundo. Só que ele voltou para o Flamengo, rival do clube que minha mãe torce, que é o Vasco da Gama. Por meu pai ser fã dele, quis homenagear dando o nome de Romário ao meu irmão. Aí, quando eu nasci, minha mãe queria, de bronca, me dar o nome de Edmundo, porque ele era ídolo do Vasco. Ela sempre torceu muito e esteve presente no futebol. No momento de registrar, quem vai é o pai. Ele acabou escolhendo o nome dele para mim. Meu nome é Paulo Henrique Sampaio Filho. Meu pai jogava pelada e sempre o acompanhávamos. Como eu e meu irmão vivíamos juntos, o pessoal chamava a gente de Romário e Edmundo".

Voz atuante

"O que eu fiz nas Olimpíadas é natural, da minha criação. Eu vivi em ambientes que tinham debates políticos, de religião. Minha família sempre foi antenada nessas coisas. Isso fez com que eu escutasse bastante e tivesse uma noção para enxergar o que a gente vive. Pode ser mistério para algumas pessoas, porque não é normal no mundo do futebol, mas minha família sempre buscou ter bastante informação, conhecimento do que acontece no mundo".

‘Que Exu ilumine o Brasil'

"Desejo que nosso povo, nosso país, possa ter progresso como seres humanos, principalmente. Que os preconceitos possam ter um fim, seja na religião, na sexualidade, seja no que for. Quando eu disse aquilo [texto que ele publicou no The Players Tribune com o título "Que Exu Ilumine o Brasil"], foi com este objetivo: que Exu possa colocar as pessoas no caminho certo, de prosperidade".

Família Madureira

"Fui para o futsal porque era novinho pra jogar no campo. Só que estava no final do ano de 2008 e eles [Vasco] me indicaram para o Madureira, que estava precisando de jogador. O grupo do Vasco já estava todo formado e me mandaram voltar em janeiro. Eu ficaria jogando pelo Madureira enquanto não voltasse para o Vasco. Só que eu gostei muito do Madureira. Criamos uma família praticamente. Tive boas atuações. Em 2009 ganhei três artilharias. Isso chamou a atenção dos quatro grandes do Rio, e eu não queria sair. Quando o futebol de campo entrou na minha vida, fui para o Vasco. Jogava campo no Vasco e futsal no Madureira. Em 2011, tive que jogar futsal no Vasco porque os outros pais já estavam perturbando minha família, pois não queriam que eu jogasse contra eles no futsal. Jogava a favor no campo e contra no futsal. Eu passava o dia todo no Vasco. Estudava, treinava no campo e no futsal".

Paulinho Futebol Clube

"Minha família é muito grande. Apaixonada por futebol. Isso fez com que todo mundo embarcasse num sonho. Todos fizeram, de alguma forma, parte desse processo, me ajudando. Quando meus pais não podiam me levar pra treinar, sempre tinha o irmão mais velho, minha vó ou um pai de amigo. Como eles sempre estavam presentes, todos já reconheciam, tinha uma marca registrada nas torcidas. Eles faziam a torcida com tantã, minha mãe com chocalho na mão, coisas que fazem muito barulho no ginásio. Todos já reconheciam quem era minha família. Eu me sentia representado. Agora aqui [na Alemanha] moro com minha mãe, meu pai e um irmão, que sempre estiveram junto comigo. A rotina é muito cheia [ele joga no Bayer Leverkusen]. A diferença é que no Brasil tinha que pegar ônibus, sair mais cedo de casa, 5 e pouco da manhã, pra treinar, depois ir pra escola, voltar à noite e ter o treino com meu personal. Muito trabalho pra chegar aonde a gente quer. Sempre fui um cara que procurou focar no presente. Mas quem sabe consigo conquistar uma convocação para a Seleção Brasileira? É um sonho".



Fonte: GQ