Tereza Borba é uma jovem senhora que não gosta de revelar a idade, muito menos a história da própria infância.
Adotada por João e Maria quando tinha apenas 21 dias de vida, ela tem recordações dos piores abusos que já viveu.
Os pais adotivos a receberam quando já eram bem velhos. Tinham apenas um filho e vários netos. O casal sempre foi muito pobre e extremamente rude com ela.
Quando pequena, a menina era humilhada por eles e pela tia, que raspavam suas sobrancelhas e cortavam seus longos cabelos claros, apenas por ela ser bonita. Era tão branquinha e delicada que era chamada de papel higiênico pela própria família.
Da vida de maus tratos, Tereza se viu obrigada a sair de casa e lutar pela sobrevivência, ainda na adolescência. Trabalhou como faxineira, cozinheira, diarista, enfim, lutou para que um dia pudesse ter família, bolo de aniversário e árvore de Natal.
Tereza pôde alcançar estes desejos de infância e muito mais depois que encontrou o vascaíno José Mauro Costa, com quem tem quatro filhos e quatro netos.
Por longos anos tiveram um quiosque onde vivem, na Cidade Ocian, na Praia Grande, litoral Sul de São Paulo. E foi lá, no quiosque número 79, que eles conheceram em 1992 um dos personagens mais injustiçados da história do futebol: Moacyr Barbosa.
O veterano goleiro faria cem anos de idade no sábado (27), se estivesse vivo. Para homenageá-lo, os canais esportivos da Disney exibem nesta sexta-feira, 26 de março, o especial "Barbosa, 100 anos de perdão", às 15h (de Brasília), na ESPN Brasil.
O programa tem a participação de Antônio Fagundes, Silvio Luiz de Almeida, Pepe, Helvidio Mattos e Aranha, e trechos inéditos de Barbosa. Será reprisado à meia-noite (dia 27), também na ESPN Brasil.
O velho Barbosa
Ex-goleiro e eterno ídolo do Vasco da Gama, o velho Barbosa viveu seus últimos anos de vida na cidade paulista ao lado da esposa Clotilde. O casal não teve filhos.
Conhecido por muitos como o goleiro da Copa do Mundo de 1950, ele levava uma vida humilde e discreta num apartamento emprestado pela cunhada.
Fora da mídia e carregando um peso imposto pela opinião pública em suas costas, algo que somente ele era capaz de descrever, adotou um fim de vida modesto.
Costumava passear no calçadão todas as manhãs e tardes, onde adorava contemplar o mar e tomar seus aperitivos, que ele chamava de "birinights".
Foi assim que Barbosa entrou na vida de Tereza e vice-versa.
Um pai, uma filha
Depois da morte de Clotilde, Barbosa foi praticamente despejado do apartamento da cunhada. Foi aí que os laços entre Tereza e o ex-goleiro ficaram ainda mais fortes.
Em 1997, Eurico Miranda, então vice-presidente do Vasco, ligou para a casa de Tereza. Estava procurando Barbosa para fazer um convite. Ofereceu ao veterano passagens para o Rio de Janeiro e hospedagem em um bom hotel. A diretoria programara uma festa aos campeões sul-americanos de 1948 e ele era uma das estrelas.
Barbosa viajou incentivado por Tereza, que o acompanhou.
O dia de homenagens deixou o velho camisa 1 sensibilizado, mas não foi o fato mais importante ocorrido. Por intermédio de Tereza, Eurico ficou sabendo das dificuldades que Barbosa passava e passou a ajudá-lo a partir daquele momento.
Tereza lembra à época que o dirigente queria comprar um apartamento para Barbosa de frente para a praia, já que a casa dela, onde ele estava morando, fica distante do mar.
A filha de Barbosa lembra que eles optaram por alugar um apartamento pequeno, mas aconchegante e todo mobiliado pelo ex-dirigente vascaíno.
Foi o presente mais importante que um dos maiores goleiros da história do Vasco da Gama recebeu em toda a vida, tendo um fim de vida com dignidade.
O desabafo final
Aposentado pela Suderj (Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro), Barbosa ganhava um salário-mínimo (na época, em torno de R$ 120). Pouco para sua sobrevivência, mas essencial para tomar seus "birinights" na praia.
Tereza lembra que o pai comia muito pouco. Duas folhas de alface, duas rodelas de tomate e um pedacinho muito pequeno de bife eram suficientes para mantê-lo em pé, vivo e brincalhão como nunca.
Nos últimos meses de vida, Barbosa demonstrava estar na melhor fase. Isso foi comprovadamente apresentado em suas duas últimas entrevistas antes de sua morte, que veio a acontecer em 7 de abril de 2000.
No dia 20 de março do mesmo ano, o repórter Helvidio Mattos esteve na mesma casa onde mora Tereza para entrevistar Barbosa. O goleiro foi praticamente o protagonista do especial "50 anos da Copa de 50: da euforia ao silêncio", dos canais ESPN.
Foi um dia longo. A gravação superou uma hora e meia. Próximo de completar 79 anos, Barbosa falou de tudo e um pouco mais sobre a difícil e honrosa vida de goleiro.
Relembrou os títulos do praticamente imbatível "Expresso da Vitória" e, claro, falou sobre a fatídica partida contra o Uruguai, que o condenou como culpado pelo resto da vida.
Poucas semanas depois, Moacyr Barbosa subiu a Serra do Mar rumo a São Paulo. Estava acompanhado de Tereza. O destino era o bairro do Sumaré, sede da ESPN Brasil, onde foi convidado para gravar o programa "Bola da Vez".
Era pra ser uma tarde de gala, e foi. Acabou entrando para a história como a última entrevista de Barbosa. Foi exibida em 8 de abril de 2000, um dia após a sua morte.
No dia da gravação, Barbosa não estava tão à vontade como na entrevista para Helvidio Mattos. Até porque não tinha nenhum "birinights" no estúdio - porque ele não pediu!
Tereza lembra que a única exigência para participar do programa foi um cachê. Pai e filha pediram R$ 500. E receberam.
Foi uma verdadeira aula de futebol e vida.
Barbosa relembrou detalhes da decisão da Copa de 1950 e mostrou-se finalmente em paz com os julgamentos que o acompanharam desde 16 de julho daquele ano.
Em nome do pai
Esta é uma história inédita. Ela jamais foi contada por Tereza, que a revelou ao receber a equipe da ESPN Brasil para falar do centenário de Barbosa.
O estímulo para a revelação foi primeiramente o desejo da filha de esclarecer um episódio em 1993. Naquele ano, muitos jornalistas noticiaram que Barbosa teria sido barrado na entrada da Granja Comary, em Teresópolis, na Serra Fluminense, no Rio de Janeiro, onde a seleção brasileira treinava para as eliminatórias da Copa.
Alguns responsabilizaram o técnico Carlos Alberto Parreira. Outros, Mario Jorge Lobo Zagallo, então coordenador técnico. Tereza negou.
"É uma mentira que foi contada e repetida. Barbosa foi recebido pelo Zagallo, os dois conversaram. Zagallo o aconselhou a não tirar foto [com os goleiros], achando que a imprensa poderia colocar aquilo como uma espécie de maldição ou até culpar o Barbosa se algo acontecesse de errado na Copa de 1994", disse Tereza.
Já a história inédita envolve a filha de Barbosa e a seleção 20 anos depois.
Durante a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, um dos titulares do time de Luiz Felipe Scolari entrou em contato com Tereza. Por respeito e confiança, ela não revela o nome do contato, mas disse que ele fez um convite para que ela fosse ao Mineirão, em Belo Horizonte, para acompanhar o duelo entre Brasil e Alemanha pela semifinal.
O combinado é que o jogador, um dos mais famosos daquela seleção, compraria as passagens, asseguraria a hospedagem dela e daria os ingressos. Faria mais: mandaria um motorista buscá-la de carro na cidade de Praia Grande e depois a levaria ao aeroporto de Congonhas, onde ela tomaria o avião para Belo Horizonte.
Por motivos que Tereza desconhece, o acordo ficou apenas nas palavras. Jamais se concretizou. Muito deprimida, ela acabou assistindo ao jogo na casa de amigos. Foi assim que ela viu a Alemanha golear o Brasil por sonoros 7 a 1.
Missão pra vida
Tereza Borba é uma mulher feliz, alto-astral e que não gosta de alimentar nada de negativo nem em seu dia a dia, muito menos quando o assunto é o gol de Alcides Ghiggia em Barbosa na decisão da Copa de 1950.
Ela evita tocar no assunto e fica muito incomodada com a imagem, repetida exaustivamente, do pai de joelhos se levantando após aquele a bola alcançar o fundo da rede.
Ao Museu do Futebol, localizado em São Paulo, ela pediu que retirassem aquela imagem gigante do pai cabisbaixo de um painel dentro das instalações do local. Segundo ela, aquela imagem negativa marcou a vida de Barbosa.
À nossa equipe, ela pediu apenas que não usássemos aquela imagem repetidamente. Implorou que falássemos das conquistas e do lado humano do amado pai.
Agora, no ano do centenário de Moacyr Barbosa, Tereza deseja fazer um memorial em Praia Grande com o material que adquiriu de Barbosa. Assim, espera enterrar de vez as injustiças e enaltecer as glórias para que ele definitivamente descanse em paz.
Fonte: ESPN.com.br