Série do Netflix 'The English Game' guarda semelhanças com a história do Vasco; pesquisadores comentam
*Contém spoiler*
Lançada no último dia 20, pelo serviço de streaming Netflix, a série "The English Game" certamente mexerá com o emocional do torcedor do Vasco que conhece minimamente a história do clube em seus primórdios. Baseada em fatos reais sobre o início da popularização do futebol na Inglaterra, a produção de seis episódios — com pitadas de ficção — é norteada pelo surgimento dos dois primeiros jogadores considerados profissionais no esporte e, principalmente, pela ascensão de equipes formadas por operários. Fato preponderante para balançar os corações vascaínos.
A trama conta os passos de Fergus Suter e Jimmy Love, que deixam a Escócia em 1878 para defender o inglês Darwen, em troca de moradia e trabalho em uma fábrica.
Com um estilo diferenciado de jogar, eles passam a ameaçar a soberania dos times da elite, que também tomavam conta da associação que comandava o futebol. E é este o primeiro ponto de semelhança com o "Camisas Negras", equipe do Vasco da década de 20.
"Essa semelhança [entre Vasco e a série] é absoluta. Tem o aspecto do preconceito social, a indignação do aristocrata por ver o operário, a classe proletária, jogar melhor que eles...", analisou, ao UOL Esporte, Henrique Hübner, ex-diretor do Centro de Memória do Vasco.
Sucesso causa ameaça de exclusão
Assim como aconteceu com o Vasco, a série mostra a ameaça de exclusão no campeonato que um time de classe baixa sofreu. No caso dos ingleses, isso se deu quando Suter e Love já defendiam o Blackburn*¹ e chegaram à final da Copa da Inglaterra.
Composta em sua maioria por integrantes das equipes de elite, a diretoria da associação inglesa quis excluir o clube ao alegar que o mesmo efetuava pagamentos aos seus jogadores "por debaixo dos panos", algo que contrariava as regras até então.
Depois de muita polêmica, o Blackburn foi aceito para disputar a final com o tradicional Old Etonians e conquistou seu primeiro título.
Já no caso do Vasco, a ameaça se deu no ano seguinte à conquista inicial, quando o time cruz-maltino desbancou os então aristocratas América, Botafogo, Flamengo e Fluminense - com 11 vitórias em 14 jogos - e levantou o caneco da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), em 1923.
Incomodados pela ascensão rápida dos vascaínos, os rivais decidiram, então, criar uma nova liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), impondo ao Cruz-Maltino a exigência — para a participação na competição — da exclusão de 12 jogadores que, não por coincidência, eram negros, mulatos e operários. Segundo os dirigentes, eles não apresentavam "condições sociais apropriadas para o convívio esportivo". O profissionalismo e o analfabetismo foram um dos itens oficialmente citados.
"Todos os jogadores, apesar das acusações, eram sócios do Vasco, alguns se tornaram beneméritos, inclusive", explicou Hübner, que ainda fez uma observação sobre a questão do analfabetismo: "O Paschoal [ponta direita] não sabia escrever o nome, por exemplo, e uma das exigências era que o jogador fosse letrado".
A "Resposta Histórica"
Inconformados com as condições impostas pelos rivais, o Vasco se insurgiu através de uma carta, que anos depois se tornaria um documento lendário e classificado como "Resposta Histórica".
Em um trecho, ela dizia: "(...) Quanto à condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever acceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consocios, investigação levada a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa (...)".
Por fim, o comunicado informava que o Vasco não disputaria a liga da Amea em 1924, fato que o fez retornar à LMDT, onde foi novamente campeão.
Com o sucesso do clube e a grande popularidade que ele atingiu no Rio de Janeiro, o Cruz-Maltino foi posteriormente convidado mais uma vez para a Amea sem a necessidade de se enquadrar às exigências anteriores.
Tal atitude foi considerada um marco para a popularização do futebol no Brasil e teve como consequência a abertura dos demais clubes para jogadores do mesmo perfil que os cruzmaltinos, movimento muito parecido com o iniciado pelo Blackburn de Fergus Suter e Jimmy Love.
"A mensagem que a Resposta Histórica passa é a de que foi a segunda Lei Áurea no Brasil", destacou em novembro de 2019 ao UOL Esporte o vice-presidente de Relações Especializadas do Vasco, João Ernesto, que complementou:
"Quando me perguntam quais são os principais troféus do Vasco, eu digo que são dois: o primeiro é a Resposta Histórica, e o outro é o próprio estádio Vasco da Gama, popularmente conhecido como São Januário, pois ele é um desdobramento da carta. Um representou a determinação dos vascaínos em enfrentar os entraves elitistas. E se aceitássemos, teríamos sucumbido. E o outro que considero o segundo grande bullying contra o Vasco foi o fato de que não tínhamos estádio e, com sangue, suor e lágrimas, construímos São Januário".
Ontem, inclusive, o Vasco comemorou 96 anos da Resposta Histórica.
Os cartolas que bateram de frente
Na The English Game, há cartolas dos dois lados que representam a resistência ao elitismo no futebol inglês. Do lado dos clubes operários, James Walsh (Craig Parkinson), presidente do Darwen, e John Cartwright (Ben Batt), mandatário do Blackburn. A dupla foi a responsável por fazer as primeiras transações com vantagens financeiras aos jogadores.
Fonte: UOL