Ex-zagueiro vascaíno Fernando nega ter feito pênalti que originou milésimo gol de Pelé; veja reportagem
Quinta-feira, 21/11/2019 - 06:03
Já são cinco décadas que Fernando Silva diz "não" quando lhe perguntam se foi pênalti em Pelé, em 19 de novembro de 1969, lance que acabou resultando no milésimo gol da carreira do Rei de Futebol. Hoje ele completa exatos cinquenta anos de culpa, cobrança e negação.

Fernando estava no lance juntamente com Renê, o outro defensor do Vasco. Clodoaldo lançou Pelé no ataque entre os dois zagueiros. Ao entrar dentro da área, o camisa 10 do Santos foi derrubado. O árbitro pernambucano Manoel Amaro de Lima marcou pênalti e teve a confirmação do auxiliar de Luiz Carlos de Oliveira, o Cacá.

Os jogadores do Vasco cercaram o juiz. Andrada xingou o atacante. Tudo em vão. A marcação foi mantida e o camisa 10 fez a cobrança para anotar o tento histórico.

"Aí foi que se deu a fatalidade, a fatalidade do milésimo gol do Pelé, em uma disputa comigo, dentro da área", disse Fernando, que usa com frequência a palavra "fatalidade" para tratar daquele momento que mudou sua vida. Ele tinha apenas 21 anos e estava em ascensão.

"Não foi pênalti! O Pelé bate na minha perna e cai. Ele tinha muita habilidade e muita malícia, mas ali ele bateu e caiu. O árbitro, que não sei porque não veio de Pernambuco, marcou. O Cacá estava um pouco longe da área, mais para o lado direito da nossa defesa. A visão dele também não era boa", afirmou.

Para Cacá, o lance foi claro: "Foi pênalti! Sem dúvida, foi pênalti. O Fernando pegou o Pelé por baixo, acertou a perna dele e o derrubou. Eu tive a mesma interpretação do árbitro. E fui até a àrea para ajudá-lo porque os jogadores do Vasco estavam questionando. Fui para acalmar todos".

"Na verdade, o Cacá não foi apaziguar. Ele foi proteger o juiz, que houve coisas que não posso repetir aqui e quase aconteceu uma tragédia", rebateu Fernando.

O que poucos sabem é que Pelé também não ficou contente com o pênalti. Ele chegou a pedir para Carlos Alberto Torres, o capitão do Santos, cobrar. No entanto, atento ao apelo do Maracanã que gritava: "Pelé, Pelé, Pelé", o lateral-direito se recusou. O camisa 10 teve de executar a cobrança.

"Se dependesse de mim, eu preferia fazer o milésimo numa jogada bonita, de bicicleta ou de cabeça, mas aí teve o pênalti, que foi muito mais difícil. Eu até brinco hoje dizendo que foi muito mais difícil fazer um gol de pênalti do que numa jogada normal. Eu sei o que eu passei. A minha perna tremia. E eu ficava 'aí meu Deus'. E o Maracanã pedia para eu bater. E eu só pensava: 'Aí meu Deus, eu não posso perder'", disse Pelé para a ESPN.

"Muita gente fala que o gol mil [não teve graça porque] foi gol de pênalti, mas pra mim foi o gol mais difícil que eu já fiz porque eu tinha consciência de tudo que estava acontecendo. Muitos gols eu fazia de bicicleta, de cabeça. A jogada acontecia. Aquele ali parou, teve todo mundo gritando. Foi um presente de Deus".

Já Fernando se incomodou com outro acontecimento naquele dia. Após o gol, um diretor do Vasco entregou uma camisa do clube cruzmaltino ao Rei do Futebol com o número 1.000 nas costas. Um presente que claramente havia sido preparado há algum tempo...

"Foi estranho. Não fui somente eu que não gostei. Outros companheiros também não gostaram. Já estava estranho terem trazido um árbitro de fora, sem experiência. São coisas que fazem você pensar.... [Estava armado?] Não posso afirmar isso. Suspeitar é uma coisa. Provar e afirmar é outra, mas...".

A vida seguiu...

Fernando teve de aguentar a cobrança nos dias seguintes. E por muitos anos a lembrança do pênalti no Maracanã o cercou

"Nos dias seguintes, as pessoas me viam na rua e falavam: 'Olha lá, o homem que cometeu o pênalti do gol mil do Pelé'. Foi difícil no começo e eu não gostava de falar do assunto. Todo aniversário do milésimo gol aparecia alguém para falar disso", disse Fernando.

Quem passou drama semelhante foi Andrada, a vítima de Pelé. O goleiro argentino, que morreu neste ano, chegou a dar socos no gramado depois que a bola passou muito perto de seus dedos e entrou no fundo da rede do Maracanã.

"Eu senti muita raiva daquele lance. Não queria tomar o gol. Disse para o Pelé que pegaria a bola. Foram meses zangado comigo mesmo por não ter defendido. Cheguei a tocar os dedos na bola e não pude defendê-la. Foram anos remoendo o lance, mas depois percebi que não foi tão mal. Todo ano, no aniversário do gol, me ligam para perguntar como foi. Acabei não sendo esquecido", disse Andrada para a ESPN algumas décadas após o milésimo.

Fernando também teve de prosseguir. Do Vasco, acabou brilhando na dupla Bahia e Vitória, sendo campeão pelos dois rivais de Salvador. Chegou a defender a seleção de novos do Brasil e jogou profissionalmente por vinte anos. Depois que se aposentou foi morar em Maricá, cidade próxima ao Rio de Janeiro, e faz o trabalho mais belo da vida.

Aos 71 anos, ensina futebol para garotos que têm dificuldades financeiras e sonham com coisas como educação, saúde e um bom prato de comida.

"Eu dou aula há 16 anos para crianças carentes, nessa comunidade pobre, ensinando futebol para eles terem uma oportunidade de mudar a vida. O intuito é ajudá-los e isso é muito gratificante. A escolinha já foi do Vasco e hoje é do América carioca. Às vezes eles me perguntam do pênalti no Pelé. Eu digo e repito: não foi pênalti. E sempre lembro que eu me dei bem nos jogos contra ele. Eu ganhei três vezes e perdi duas", disse Fernando, aos risos.





Fonte: ESPN.com.br