Caso Thalles chama atenção para a relação trágica entre futebol e bebidas alcoólicas
"Gastei muito dinheiro com bebidas, mulheres e carros velozes. O resto, desperdicei." Essa é a frase mais famosa de George Best, jogador nascido na Irlanda e que encantou os torcedores do Manchester United com seu estilo irreverente dentro e fora de campo a partir dos primeiros jogos como profissional nos anos 1960. Em 12 palavras, Best parece ter resumido, com humor, o sonho romantizado de muitos jovens — do Reino Unido e de outras partes do mundo — que entram no mundo do futebol atrás de fama, dinheiro e diversão. Uma declaração de Best durante seu processo de falência em Londres em 1983 é bem menos conhecida, mas, talvez, mais reveladora dos perigos que acompanham o sucesso dentro das quatro linhas: "Sou alcoólatra". Hospitalizado no ano 2000, recebeu um transplante de fígado em 2002, mas morreu em 2005 com 59 anos.
O brasileiro Thalles Lima de Conceição Penha, atacante revelado pelo Vasco da Gama e cedido à Ponte Preta, foi uma das últimas vítimas do consumo excessivo de álcool no mundo do futebol. Em junho deste ano, com apenas 24 anos, morreu num acidente de moto em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tinha quatro filhos, cada um com uma mulher diferente. De acordo com fontes da Polícia Civil ouvidas por ÉPOCA, a suspeita é que Thalles estava sob efeito de bebidas alcoólicas, o que não chega a ser surpresa para aqueles que conviveram com ele. Colegas e profissionais do Vasco são unânimes em dizer que havia problemas extracampo em sua curta carreira, muitos deles relacionados ao abuso de álcool. Atual técnico do Coritiba, Jorginho, de 55 anos, foi o treinador que acompanhou a evolução de Thalles desde as categorias de base. "A gente não sabia se era de vez em quando ou todo dia, mas a gente percebe quando o jogador não dormiu bem, não está descansado e não consegue ter uma boa produção no treinamento", relembrou, sobre o tempo que conviveu com o jovem.
O ex-auxiliar técnico de Dunga na Seleção Brasileira afirmou que não consegue identificar nenhum órgão relacionado à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), ou até mesmo dentro de clubes em que já trabalhou, que promova ações efetivas e constantes para combater o alcoolismo. "O que existe, em alguns clubes, são psicólogos e assistentes sociais que dão palestras esporádicas e chamam a atenção para o assunto. Mas, com clube que tenha um planejamento elaborado em relação à dependência alcoólica, eu particularmente nunca trabalhei. Como já tive casos dentro de minha própria família, sei que essa situação é realmente um problema", disse Jorginho. "Como técnico, já tive atletas que bebiam todos os dias, mas não reconheciam que eram dependentes. Faz falta uma conscientização, principalmente começando pela base", completou.
Alcoolismo é um problema antigo e constante no futebol. Inclui promessas, jogadores medianos, craques e até deuses. Há 36 anos, o Brasil perdeu Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, tragado pelo vício cultivado desde a adolescência em Magé, no interior do Rio de Janeiro. Campeão das Copas de 1958 e 1962, morreu em consequência de uma cirrose hepática. Ex-jogador do Bangu vice-campeão brasileiro de 1985, Mário José dos Reis Emiliano, mais conhecido como Marinho, conquistou sete títulos pelo Atlético Mineiro e vestiu a camisa da Seleção Brasileira na Olimpíada de Montreal, em 1976. Quando jogava pelo Botafogo, porém, viveu a maior tragédia de sua vida. Ao receber uma equipe de jornalismo para uma entrevista, em 1988, Marinho se descuidou do filho Marlon, que morreu afogado na piscina, com pouco mais de 1 ano de idade. Entregou-se completamente à bebida, em uma história de degradação física que envolve tuberculose e internações frequentes. Aparenta bem mais idade que os 62 anos que a carteira de identidade registra. "Eu virei, praticamente, um mendigo. Perambulava pelas ruas de Bangu e Realengo. Dormi diversas vezes debaixo de viadutos", disse o ex-atleta ao jornal O Estado de Minas . Hoje, é cuidado pelos filhos do primeiro casamento, na periferia de Belo Horizonte.
Os nomes e as nacionalidades mudam, mas o problema é o mesmo. Um estudo de 2015 do FIFPro, um sindicato internacional dos profissionais de futebol, mapeia a dimensão do desafio. A pesquisa, com mais de 800 jogadores e ex-jogadores, mostrou que 9% dos atletas e 25% dos que pararam de jogar admitem o consumo excessivo de bebida alcoólica. Como ação de conscientização, a entidade criou um guia especial, disponível em 15 idiomas, abordando sintomas de transtornos e sugerindo informações de apoio.
Além dos impactos devastadores sobre a vida privada, o abuso de álcool é incompatível com o esporte de alto rendimento, dizem fisiologistas, e pode levar uma carreira brilhante a um final melancólico. Para ser metabolizada, a substância sobrecarrega os rins e o fígado, além de afetar o sistema nervoso central, o que diminui a velocidade das ações. Como a bebida provoca desidratação, o corpo enfrenta dificuldades para regular a própria temperatura pelo suor, além de perder a capacidade de transportar oxigênio pela corrente sanguínea. Em consequência disso, a pressão arterial sobe, gerando sobrecarga no sistema cardiovascular e expondo os atletas a um risco maior. Segundo Daniel Gonçalves, fisiologista do Vasco, um atleta não pode ingerir mais que o equivalente a uma dose de uísque três vezes por semana. "Numa dieta balanceada, é importante consumir gordura, mas o álcool é caloria morta. Se você consome 200 gramas de álcool, isso é revertido em 1.400 calorias. E a bebida está atrelada a uma quantidade alta de calorias agregadas, porque sempre se come alguma coisa junto. Tudo isso é muito mais que o atleta perde na atividade física. O atleta acaba ganhando peso em decorrência do uso abusivo", disse Gonçalves. Jovens conseguem se recuperar mais rápido por causa do metabolismo acelerado, mas, com o passar do tempo, os efeitos são mais severos e podem até comprometer a cicatrização de lesões.
Como mostra a trajetória do atacante Jô, ex-Corinthians, nem todas as histórias de alcoolismo no futebol têm final trágico. Uma cena da festa de comemoração do título do Brasileiro conquistado pelo Corinthians em 2017 ficou marcada. A cerveja que patrocinava o clube distribuiu copos gigantes para os atletas no gramado, mas Jô visivelmente recusou a oferta. Há cinco anos longe de bebidas e noitadas, o jogador, que hoje está no Nagoya Grampus, do Japão, é sincero sobre como o consumo exagerado de álcool afetou sua vida e quase o impediu de viver o maior sucesso da carreira. Em 2014, convocado por Luiz Felipe Scolari para integrar a Seleção na Copa do Mundo, Jô, então no Atlético Mineiro, tinha de lidar com seu vício. "Algumas pessoas me davam conselhos positivos, mas eu tinha um pouco de cabeça dura e não escutava. Era algo que me atrapalhava muito, porque eu tinha de cuidar do meu corpo e não cuidava. Eu saía. Tinha dias que eu não podia beber, mas bebia e não dormia direito. Ia treinar cansado, não desempenhava um bom trabalho e consequentemente não fazia bons jogos", assumiu.
No Atlético Mineiro, o atacante atravessou momentos de instabilidade e chegou até a se separar da mulher, Cláudia. Para contornar, recorreu à fé. Até hoje frequenta um templo neopentecostal em Nagoya, no Japão. "Cada um tem uma maneira de se recuperar. Para mim, a única saída foi me entregar à fé cristã e à Igreja. Foi lá que encontrei o caminho novamente e fui largando os velhos costumes, as coisas que me deixavam para baixo e para trás. Eu me reaproximei das pessoas que queriam meu bem, no caso, minha família inteira, que eu tinha deixado um pouco de lado, e aí as coisas voltaram a acontecer", disse o jogador, que reatou o casamento. Hoje o casal tem dois filhos: Pedro, de 5 anos, e Miguel, de 1 ano e 9 meses. De acordo com o jogador, alguns clubes pelos quais passou têm por filosofia dar mais atenção aos atletas, como o Atlético Mineiro e o Corinthians. "É importantíssimo você ter pessoas dentro dos clubes que possam auxiliar qualquer jogador que estiver passando por essa dificuldade. Afinal, o jogador é um produto do clube, e um bom produto gera um bom desempenho."
A psicóloga do Vasco, Maíra Ruas, faz um trabalho de conscientização com os atletas, mas ressalta que toda mudança só pode ser feita a partir da decisão do próprio jogador. Com Thalles, não deu certo. A psicóloga se lembra do jogador como um garoto simpático, engraçado, amável, de muito amigos e bastante acessível, que prontamente atendia quando chamado. Ela afirmou, contudo, que o tratamento de questões como o abuso de álcool não pode cair no paternalismo que tira do jogador a responsabilidade sobre sua carreira e, em última análise, sua vida. "A gente tem de ter cuidado com a definição de culpa. Até onde a culpa é da instituição? Até onde a culpa é da família? Ou da comunidade em que ele vivia?", perguntou Ruas.
Thalles gostava de andar com amigos de infância. Segundo o pai, Ubiracy da Penha, o garoto queria ser independente. Sem rotular o filho como alcoólatra, ele afirmou que Thalles gostava "da cervejinha e do uísque" e que dormia quase o dia inteiro quando estava em casa. Disse que o aconselhava, mas a juventude tornava tudo mais difícil. Os problemas extracampo só teriam começado a aflorar a partir do primeiro contrato profissional, em 2013. É normalmente o momento em que o jovem programado para ser jogador de futebol recebe o primeiro salário significativo.
Brunna Moreira é mãe de Pedro, o filho caçula de 1 ano e 8 meses que o atleta deixou. Ela tem certeza de que a vontade de Thalles de estar constantemente com os amigos que não tinham a mesma profissão interferiu no futuro do atacante. "Ele era um garoto novo que gostava de viver a vida do jeito dele, gostava muito de sair e, quando se sentia privado disso, acabava não levando muito a sério as cobranças", disse a jovem de 23 anos, que o descreveu como um "ótimo pai, presente e respeitador". Thalles levava duas moças na garupa da moto quando caiu sem capacete, sofrendo múltiplas lesões. Fraturou a mandíbula, o braço esquerdo e teve uma infiltração hemorrágica no cérebro. Por telefone, uma das meninas contou a ÉPOCA que ainda lida com cirurgias em decorrência da queda. Indagada sobre se as pessoas na moto haviam bebido, ela é direta: "Eu não".
Fonte: Época