A extinção do racismo no futebol
Este texto foi compilado de uma série de crônicas publicadas em 1974 pelo Jornal dos Sports, na coluna Uma Pedrinha na Chuteira, assinada pelo Zé de São Januário (pseudônimo do jornalista Álvaro do Nascimento).
Em 1923, uma equipe considerada pequena, que acabara de ser promovida a primeira divisão, conquistou o campeonato carioca. Como se isso não bastasse para provocar a ira dos aristocráticos clubes grandes, o campeão era formado por trabalhadores de origem humilde, brancos, negros e mulatos, sem dinheiro nem posição social. Este campeão era o Vasco da Gama.
Naquela época, o racismo imperava no futebol brasileiro. Em 1921, era debatido se jogadores de cor deveriam ser convocados para os importantíssimos confrontos entre a seleção brasileira e a da Argentina.
Como vingar-se do atrevimento do Vasco? Os clubes aristocratas reuniram-se e deliberaram excluir jogadores humildes, sob a alegação de que praticavam o profissionalismo.
Numa sessão realizada na sede da Liga Metropolitana, Mário Polo, o presidente do Fluminense, apresentou as condições impostas aos chamados pequenos clubes. Estes teriam que apresentar condições materiais e técnicas e eliminar de seus quadros sociais jogadores considerados profissionais, constantes de uma lista que foi lida no momento.
A confusão e as vaias explodiram no recinto ao término da exposição feita por Mário Polo.
Finalmente usou da palavra Barbosa Junior, do S.C. Mackenzie, representante dos chamados pequenos clubes, condenando o racismo dos grandes clubes, uma vez que os jogadores atingidos eram apenas os mulatinhos rosados do Vasco, Bangu, Andaraí e São Cristóvão, sendo o Vasco o mais prejudicado de todos. Os arianos do Fluminense, Botafogo, Flamengo e América nem de leve foram tocados.
Os aplausos calorosos da enorme assistência a Barbosa Junior deixaram a Mário Polo desapontado. A confusão foi de tal ordem que a sessão foi suspensa por dez minutos, durante os quais Mário Polo e Ari Franco, o representante do Bangu, retiraram-se juntos para uma das salas onde conversaram secretamente.
Vendo seus planos irem por água abaixo, os clubes grandes decidiram que se afastariam da Liga Metropolitana, formando uma nova entidade, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos. Estava decretada a cisão do futebol carioca.
Mário Polo e seus comparsas calculavam que os chamados pequenos clubes ingressariam cabisbaixos e humilhados na nova entidade, submetendo-se às suas regras discriminatórias. Bangu e São Cristóvão, que possuíam jogadores atingidos pelo racismo, confirmaram as expectativas dos grandes. Os demais fatalmente seguiriam essa opção, não fora a atitude desassombrada do presidente vascaíno Dr. José Augusto Prestes e da diretoria do Vasco, enfrentando com galhardia a campanha racista, apoiado pelos outros pequenos clubes.
Um ofício assinado pelo presidente do Vasco foi enviado a Arnaldo Guinle, presidente da AMEA, declarando publicamente que negava-se a participar da nova entidade. Esse documento histórico, transcrito abaixo, deu origem a extinção do racismo no futebol.
Eis o teor do ofício:
Rio de Janeiro, 7 de abril de 1924
Ofício no. 261
Exmo. Sr. Arnaldo Guinle, M.D. presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.
As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama em tal situação de inferioridade que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.
Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma como será exercido o direito de discussão e voto, e as futuras classificações, obriga-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.
Quanto a condição de eliminarmos doze (12) jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama, não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos con-sócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se a AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores jovens quase todos brasileiros no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias.
Nestes termos, sentimos ter de comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA.
Queira V. Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever de V. Exa. Att. Obrigado.
Dr. José Augusto Prestes
Presidente
Este ofício do C. R. Vasco da Gama esclarece com precisão os motivos que levaram o hoje poderoso clube de Sao Januário a afastar-se dos chamados grandes clubes, ficando ao lado dos pequenos. Isso deu ao Vasco a maior popularidade e admiração já alcançada, até aquela época, por clubes desportivos do Rio de Janeiro.
O presidente do Vasco, em declaração pública, afirmou que só voltaria ao seio dos grandes clubes quando o Vasco fosse maior do que todos eles. Para tal coisa conseguir, o Vasco teria que construir um grande estádio.
O reinado dos arianos durou menos de um ano. Em 1925, os grandes clubes, verificando a potencialidade do Vasco, que dentro em pouco apresentaria o maior estádio do Brasil, abandonaram o racismo e remodelaram totalmente o futebol, permitindo a inscrição de jogadores humildes e concedendo ao clube da Cruz de Malta os mesmos direitos dos clubes fundadores da AMEA.
Com a inauguração do estádio de São Januário, em 1927, o Vasco, que em 1924 era o menor dos grandes, transformou-se no maior entre todos os clubes do Brasil.