O dia em que Mané virou João
Vasco 2x0 Botafogo (Taça Guanabara 1965)
O Vasco, que desde 1958 não chegava a uma final, estava pronto para decidir a I Taça Guanabara com o Botafogo. O campeão da taça seria o representante estadual em outra importante competição: a Taça Brasil. A expectativa era enorme e o Botafogo era apontado como o favorito absoluto, pois na partida do turno vencera o Vasco com facilidade: 3 a 0.
Mané Garrincha, como não poderia deixar de ser, era a grande atração do jogo e um dos principais responsáveis pela presenca dos 115.064 torcedores pagantes no Maracanã, no domingo de 5 de setembro de 1965. A renda de Cr$72.927,38 foi recorde absoluto naquele ano, no Rio. Mas infelizmente - para os torcedores do Botafogo - Garrincha não conseguiu repetir a espetacular atuação que tivera na partida do turno, quando deu um verdadeiro "baile" no seu marcador, o lateral-esquerdo Oldair. Para supresa geral, ou pelo menos dos que não acompanharam os treinos do Vasco naquela semana, os papéis inverteram-se, tendo Oldair passado de "João" a herói máximo da partida: Além de ter anulado completamente a Mané e, por extensão, a todo o ataque alvinegro, ainda marcou o primeiro gol de seu time.
Dirigido por Zezé Moreira, o Vasco fez contra o Botafogo o que se pode chamar de uma exibição de gala, impondo-se do início ao fim, chegando inclusive a aplicar o famoso olé em cima dos jogadores alvinegros.
O time vascaíno dominou amplamente o seu adversário. Garrincha não conseguia passar uma só vez por Oldair, que o marcava em cima e o desarmava, limpamente, com carrinhos na bola, toda vez que Mané a recebia. Apesar do domínio, o Vasco só conseguiu marcar o primeiro gol aos 40 minutos do primeiro tempo. Oldair recebeu de Zezinho, avançou e, da esquerda da meia-lua da grande área, arrematou. A bola quicou na frente de Manga, que pulou adiantado, e cobriu-o de forma inapelável (RA, 101k).
Voltando com a mesma disposição para o segundo tempo, o Vasco decidiu o jogo logo no início: Aos 5 minutos, Mário penetrou pela ponta-esquerda, em jogada individual, foi a linha de fundo e cruzou rasteiro. Manga saltou mas não conseguiu cortar o cruzamento e Paulistinha, que vinha na corrida, afobou-se e colocou a bola dentro do seu próprio gol.
Daí para a frente o time de Zezé Moreira limitou-se a tocar a bola e explorar os contra-ataques e ainda foi beneficiado com as expulsões de Paulistinha e Roberto, ambas por agressão sem bola ao adversário. No finalzinho houve então o olé, que foi comemorado e cantado em coro pela torcida vascaína nas arquibancadas. O capitão Brito levantou a taça (JPEG, 11k) para delírio da galera, que na saída do estádio ainda gritava o tradicional "1, 2, 3, Botafogo é freguês", e um novo refrão, "Garrincha foi João, e o Vasco é campeão".
O Vasco (JPEG, 34k) sagrou-se campeão com Gainete; Joel, Brito, Fontana e Oldair; Maranhão e Lorico; Luisinho, Célio, Mário e Zezinho. O Botafogo perdeu com Manga; Joel, Zé Carlos, Paulistinha e Rildo; Aírton e Gérson; Garrincha, Sicupira, Jairzinho e Roberto. O jogo foi dirigido por Frederico Lopes, com Eunápio de Queiroz e Claudio Magalhães nas bandeirinhas. O Vasco obteve seis vitórias, um empate e apenas uma derrota, e teve ainda o artilheiro da I Taça Guanabara: Célio, com seis gols.
Meu Personagem da Semana
Nélson Rodrigues
Crônica publicada em O Globo em 6 de setembro de 1965
1 - Amigos, hoje eu não vou fazer mistério, não vou fazer "suspense". Direi, logo, quem é o meu personagem da semana: - Oldair, que foi a maior figura do Maracanã. Antes de começar o seu elogio, quero dizer duas palavras sobre o jogo. Como se sabe, em nosso idioma duas palavras são duzentas. Mas vamos lá. O Vasco venceu, e vamos e venhamos: - Desde as Descobertas, desde o Caminho das Índias, sua torcida precisava de uma alegria assim, desvairada e total.
2 - A renda deslubrante prova que a partida comovera a cidade. Houve dois espetáculos, um dentro do Maracanã e outro fora. Nas imediações do estádio, nunca vi tanto automóvel, nunca. Os carros subiam pelas calçadas, trepavam nos muros, inundavam o asfalto. O Prefeito de Londres, que compareceu ao jogo, deve ter anotado no seu caderninho: "No Brasil, cada habitante tem um automóvel". Outro espetáculo estarrecedor era do povo apinhado lá dentro.
3 - E não resisto à tentação de falar do público. Outrora, as multidões não existiam, simplesmente não existiam. A Revolução Francesa, por exemplo, foi ganha por uns cento e cinquenta gatos pingados. As grandes massas são recentíssimas. E a multidão de ontem era tão densa, tão compacta, que chegou a escurecer o Maracanã. De repente, todos nós sentimos que a noite vinha, não de cima, não do alto, mas da treva da multidão.
4 - Mas vejamos a batalha. Sempre achei que o placar é burro e, repito, burríssimo. Os 2x0 oficiais não dizem nada. A história da partida está, não nos "goals" feitos, mas nos "goals" que o Vasco deixou de fazer. A partir de certo momento, baixou no Botafogo um desepero atroz. Pode-se talvez datar esse desespero do frango de Manga. Quando o formidável goleiro deixou passar a bola, os botafoguenses ficaram atônitos. E eu diria que, para eles, o frango foi mais trágico do que o "goal".
5 - Compreende-se o espanto. Todo o "team" vê Manga, não como um goleiro normal e perecível, não. Debaixo dos três paus, ele se ergue, sólido, solene, eterno como uma catedral. E, de repente, a torcida vê essa catedral papar um frango desvairado. Eu não diria desvairado, e sim bíblico. Foi bíblico, sim, o frango que a catedral engoliu.
6 - Mas esse primeiro "goal", de um tiro de Oldair, não afeta em nada a beleza, a justiça da vitória cruzmaltina. Pois se houve um frango, na abertura da contagem, o Vasco perdeu cinco ou seis "goals" fatais. Inclusive marcou um, que seria o terceiro, arquilegítimo e maravilhoso, que o juiz anulou, sob a alegação de um impedimento absurdo. O Vasco triunfou, não porque Manga papasse o seu frango ou porque Paulistinha fizesse um, contra. Sem o frango e sem Paulistinha, a equipe de São Januário ganharia do mesmo jeito e com o mesmo "elan" dionisíaco.
7 - Ontem, era a tarde absoluta do Vasco. E aqui começo a falar de Oldair. Durante os 90 minutos de jogo, todos os tricolores, presentes à peleja, fizeram a seguinte e amarga constatação: - a venda desse craque foi uma "gaffe" hedionda. Que jogador limpo, leal, incansável e bravo. Vocês se lembram do anterior Botafogo x Vasco. Garrincha passou a bola, umas seis vezes, por entre as pernas de Oldair.
8 - Naquela partida houve um mártir, e foi Oldair. Com uma tanga, seria um São Sebastião flechado. Outro qualquer teria desistido dos recursos puros e simples do futebol para baixar o pau. Não Oldair. Seu comportamento, até o fim, foi de uma correção tocante. Quando lhe perguntaram porque não baixara a lenha no Mané, respondeu com uma simplicidade patética: "O Brasil ainda precisa dele".
9 - Ontem chegou a vez de Oldair. Sem violência, e com um futebol imaculado, ele marcou o Mané e o apagou. Dirá alguém que, duas ou três vezes, ele andou segurando Garrincha. Mas não foi brutal, nunca. E não parou em campo. Esse dinamismo implacável se transmitiu ao resto do "team". Amigos, eu não queria concluir sem falar de um fato de alto patético. Refiro-me à ressurreição da imensa torcida vascaína. O povo do Vasco perdera muito da antiga fé, do antigo fanatismo. Mas veio Zezé Moreira e potencializou o "team". E ontem esse povo, exilado do Maracanã, para lá voltou. A massa de São Januário trazia no coração uma violenta nostalgia do título e da vitória. De lá saiu com o título, de lá saiu com a vitória.