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Memórias não se apagam

Rafael Moreira Fabro


Certo dia antes de um jogo com pouco público, entrincheirei-me num botequim e lá fiquei por umas boas duas horas. Havia ali não mais do que umas três almas bêbadas sendo que uma delas carregava uma camisa já esfarrapada pelo tempo com a cruz de malta a cair, tamanha era a descostura provocada pelas intempéries de tantos anos. Fiquei a fitar o tal sujeito com uma admiração terna por ali ver um típico, e por que não dizer, lírico torcedor. Decidi conversar com ele, que pendia ao lado do balcão. Perguntei banalmente o palpite para o jogo que viria a seguir. Ele retrucou: "Que jogo?!". Juro que não entendi nada, pois o via ali de camisa, perto do estádio e acreditava ser óbvio que dali partisse para as arquibancadas ou, na pior das hipóteses, soubesse do andamento das notícias do time. Respondi, então, atônito com a questão prosaica e etílica deferida pelo meu novo e dileto amigo: "Você me pergunta que jogo, companheiro? O Vasco vai jogar daqui a pouco aqui do lado e você não sabe de nada?" Não fui ofensivo, fui até bem-humorado para tamanha estranheza. Não sabia que dali sairia uma tese de bar daquelas de não se deixar esquecer.

"Rapaz, um dia você vai perceber que usar essa camisa de tantos anos e ser vascaíno significa mais do que um jogo." Ele me disse isso com segurança nos olhos já rubros de cachaça. Não pude deixar de notar as palavras bem medidas e colocadas (o que para um bêbado era notável) mas a idéia que ficara fugia da minha lógica fanática. Resolvi estimulá-lo a falar mais da "sua tese".

Ele olhou para longe, como se não tivesse ouvido o meu pedido para que desenvolvesse suas idéias tão originais e obscuras, até então, para mim. Só tomava fôlego para começar a desfiar um rosário de lembranças e dores da sua vida vascaína. "Rapaz, não há no mundo satisfação maior do que entrar num estádio lotado pela primeira vez..." Até aí tudo bem, não havia falado nada mais do que o ululante rodrigueano e que eu já havia sentido num incrível Vasco x Bangu. Mas tinha mais. "Quando você descobrir que saber-se vascaíno é um prazer em si, não precisará mais ouvir elogios de um lado ou de outro, não precisará saber se ganhou ou não do outro time. Ser Vascaíno é escutar magnânimo críticas de todos os lados, levar pedradas de todas as partes, e nem por isso deixar de sentir-se verdadeiro e autêntico na sua paixão". Escutei aquilo tudo petrificado. Ele falou mais: "Claro que ganhar um jogo é redentor, não estou lhe criticando por isso, obviamente. Mas você já percebeu que uma semana após aquela derrota de vomitar de náusea, você está lá de novo torcendo e se esgoelando? Pois é... O Vasco é feito de vitórias e derrotas, como qualquer paixão terrena. Uns escolhem outra paixões, é do gênero humano, quem sou eu para julgar que a minha paixão é melhor do que a de tantos outros, mas a minha é só minha e sinto-me em paz."

Definitivamente estava boquiaberto de ouvir filosofias da boca de um bêbado. Equilibrava-se nas palavras como quem baila tranqüilamente, sem se preocupar com esbarrões ou tropeções. De uma forma ou de outra, entendia ali o que ele queria dizer.

"Talvez você lembre a primeira comemoração de um gol... Talvez aquela primeira sensação de prazer e amor pelo clube você nunca mais terá... Tudo será repetição daquilo... Tudo que virá só será um pequeno teatro que encena aquele primeiro momento... O momento em que você abraçou seu amigo, seu pai, seu tio, quem estivesse ao seu lado para comemorar extasiado um gol...Ou o momento em que você pela primeira vez sentiu-se realmente vascaíno". Virou-se e foi embora...

Fiquei pensando com um sorriso no rosto no dia em que atravessando uma transversal da Prof. Eurico Rabelo, saindo do Maracanã, ouvi de um transeunte que me via triste depois da derrota: "Garoto, não liga não, o Vasco ainda vai ganhar muitos títulos, você ainda vai sair desse estádio muito feliz". Lembro-me que olhei para o meu pai, que me dava a mão, e sorri. Até hoje me lembro disso. Talvez seja a lembrança mais carinhosa que tenho do que o Vasco foi para mim na minha infância. O bêbado equilibrista (que me perdoe Aldir Blanc) estava mais do que certo.

Lá no fundo ia o bêbado. Encaminhava-se para o estádio apaixonado. Não ignorava aquele jogo, apenas me encantou como num truque. Pôs-me na teia para entender a paixão acima das pequenas realidades que vagam por aí...

Ah, a realidade... Tão enevoada, tão artesanalmente fabricada... Realidades são muitas, há para todos os gostos, de acordo com o momento... Mas uma fantasia que me é muito real não vão conseguir editar. Assim como fantasias de mais de 10, 15 ou 20 milhões de brasileiros. Se a realidade é o que querem passar, pior para a realidade. Nossas memórias não se apagam como numa ilha de edição global.

 

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