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NETVASCO - 23/06/2010 - QUA - 08:19 - Cônsul-Geral de Portugal no RJ fala sobre o Vasco da Gama

Entrevistado: Embaixador António de Almeida Lima

Quem é: Cônsul-Geral de Portugal no Rio de Janeiro

Data: 23/06/2010

SempreVasco - Conte-nos como o senhor iniciou na carreira diplomática.

António de Almeida Lima - Iniciei a minha carreira no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, em 1983, como adido de Embaixada, depois de ter sido aprovado em concurso de provas públicas. O meu primeiro trabalho diplomático foi na área do direito internacional, acompanhando as negociações no âmbito das Nações Unidas e do Conselho da Europa para a codificação internacional de várias normas de protecção de direitos humanos e de combate ao merecenarismo e ao terrorismo.

SempreVasco - Há quanto tempo o senhor ocupa o posto de posto diplomático no Brasil?

António de Almeida Lima - Eu sou Cônsul-Geral no Rio de Janeiro - no quadro diplomático português é equiparado a chefe de missão -, desde Janeiro de 2006 e as minhas funções abrangem nas áreas correspondentes aos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Para além das responsabilidades no domínio consular - protecção aos cidadãos portugueses, emissão de documentos de identidade e de viagem aos portugueses e atos de registro civil e notariado – desempenho acções de representação económica, cultural social e política nestes estados, com a coordenação do nosso Embaixador no Brasil, actualmente o Embaixador João Salgueiro.

SempreVasco - Em 1902, uma baleeira do clube naufragou na Baía de Guanabara, matando quatro dos seus treze tripulantes. A tragédia só não foi maior, devido a coragem de dois pescadores, oriundos de Póvoa do Varzim, que resgataram os demais que estavam à bordo. Sabedor do ocorrido, sua majestade Rei Dom Carlos de Portugal, através de seu conselheiro no Brasil, condecorou por bravura os dois pescadores. E esses fatos ocorreram apenas três anos após a fundação do clube, quando este lutava por sua sobrevivência, tendo portanto ainda quase nenhuma expressão no cenário esportivo e social no Brasil. Mesmo assim, vemos o Estado português já ligado ao clube através de sua Embaixada, no Rio de Janeiro. Sendo o sucessor desta linha diplomática, como o senhor se sentiu nas vezes que representou seu país no eventos do clube?

António de Almeida Lima - Felizmente sempre com muito orgulho de ser português e emoção em constatar o prestígio e respeito que a comunidade portuguesa no Rio de Janeiro tem; e que o clube de Regatas Vasco da Gama é um símbolo com especial significado para a herança lusitana.

SempreVasco - Entre o fim do século XIX e o início do seculo XX, a elite carioca procurou renegar a herança portuguesa do Estado brasileiro. Para eles, Portugal representava o atraso e a moda era ser francês. Nesse contexto, vemos Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro, remodelando a capital da República para se tornar a 'Paris dos trópicos' e o movimento dos patéticos jacobinos perseguia a colônia portuguesa. Uma de suas publicações, assim dizia em 1894: 'combateremos e odiamos o elemento português, que é o que nos corrompe e ceifa a existência, monopolizando tudo e sacrificando nossa população'. Nessa mesma época, o remo adquire popularidade, se torna o principal esporte brasileiro. Basta dizer, o presidente da República, em pessoa, entregou o troféu do primeiro campeonato do Vasco em 1905, e um clube de imigrantes portugueses desbanca os clubes daquela elite que queria esquecer Portugal. Como o senhor analisa o Vasco como elemento afirmador da colônia portuguesa no Rio de Janeiro?

António de Almeida Lima - O “Vasco da Gama” é das agremiações que talvez mais alto e longe tem levado o exemplo dos valores lusitanos no Brasil. Pautando o seu comportamento no mundo desportivo desde o início da sua formação pela afirmação de princípios de respeito e dignidade humanas, o “Vasco da Gama” soube comandar a admiração de todos e por isso merece os nossos elogios e a nossa gratidão.

SempreVasco - O senhor proferiu um discurso emocionante no aniversário de 106 anos do Vasco, em agosto de 2006, ocasião em que foi agraciado com o titulo de Sócio Honorário do clube. Conte-nos sobre essa experiência.

António de Almeida Lima - Aqui pude, entre outras coisas, admirar o “Vasco da Gama” como símbolo maior da obra dos imigrantes portugueses e luso-brasileiros. Por isso, ter recebido o título de Sócio Honorário deste grande clube faz-me sentir mais próximo da comunidade portuguesa e das suas “obras valorosas que a vão da lei da morte libertando”, como dizia Camões.

SempreVasco - Em 1931, o Vasco faz uma excursão à Europa - sendo o primeiro clube de futebol, que ainda tem um departamento de futebol profissional, a fazê-lo - e disputa partidas contra o Porto e Sporting de Lisboa. Em 1947, outra visita ocorre e o Vasco joga partidas amistosas novamente contra os mesmos clubes. Recentemente, o presidente Roberto Dinamite viajou a Portugal com alguns de seus vice-presidentes para estreitar laços com clubes lusitanos como o Benfica e o Vasco da Gama de Sines. Vista por nós como pouco explorada devido aos laços culturais que nos unem, como o senhor vê essa relação bilateral entre o Vasco e os clubes portugueses?

António de Almeida Lima - Sei, por experiência própria, que quem conhece, esclarece. Devemos evitar fixar a imagem que temos do outro em ideias feitas e preconceitos e para isso o conhecimento mútuo alarga os nossos horizontes e valoriza mais aquilo que nos aproxima, o que, no caso de Portugal e Brasil é muito. A língua comum e a globalização do mundo contemporâneo oferecem-nos reais possibilidades de alargar e aprofundar os contactos humanos, por isso devemos incentivar as viagens a ambos os países, os encontros técnicos, desportivos, económicos, sociais e culturais entre Portugal e Brasil. Saúdo por isso a aproximação que o “Vasco da Gama” procura com os seus congéneres portugueses e espero que dê frutos e seja bem correspondida.

SempreVasco - Uma das passagens mais bonitas da história do Vasco foi a construção de São Januário, em 1927. O Vasco, que não tinha nada, ergue o maior estádio da América Latina e que, até hoje, é o maior estádio particular do Rio de Janeiro. Quem viveu essa época, como o escritor e jornalista Mário Filho, aponta a humilhação que os outros clubes tentaram fazer o Vasco passar por não ter estádio como a principal responsável pelo erguimento do colosso de São Januário. Tentaram humilhar o Vasco, por conseguinte a colônia portuguesa, ou seja, São Januário é um monumento em concreto que simboliza o que o português pode fazer e, nas palavras do cronista citado “se mexessem mais com o português, ele ergueria um Maracanã”. Comente sobre a capacidade realizadora da colônia portuguesa e suas obras no Brasil como outras instituições.

António de Almeida Lima - Das experiências mais marcantes da minha vida como diplomata português tem sido servir no Rio de Janeiro, terra de tantos e tantas compatriotas, onde a sua contribuição para a construção do Brasil e para a dignificação de Portugal radica num profundo empenho em amar os dois países por igual. Para além da saga individual de tantos imigrantes lusos que ousaram lutar e vencer no “Novo Mundo” criando aqui inúmeras empresas, comércios, serviços, indústrias, etc., impressiona a quantidade e qualidade das obras colectivas criadas pelos portugueses no Rio, como o “Vaco da Gama”, o Real Gabinete Português de Leitura, o Liceu Literário Português, a Caixa de Socorros D. Pedro V, as Beneficências Portuguesas, as Irmandades, os Hospitais Egas Moniz e Casa de Portugal, as Casas Regionais e clubes de convívio e cultura. Todas são exemplo do espírito empreendedor e solidário da comunidade portuguesa.

SempreVasco - Já se disse que o Vasco não é brasileiro como os outros clubes, pois adveio do "colonizador". O curioso é que esses mesmos clubes, durante boa parte de suas histórias, discriminavam racial e socialmente outros brasileiros, enquanto o Vasco sempre abrigou todos da mesma maneira, sejam eles portugueses ou brasileiros, brancos ou negros, ricos ou pobres. Os ditos brasileiros puros tratavam seus pares nacionais como parias enquanto o portugues, que acabava se tornando brasileiro pois trabalhava, fixava residência e constituiria família no Brasil, os tratavam como irmãos. Qual a sua opinião em relação a esse tema e o legado português da miscigenação?

António de Almeida Lima - A história de Portugal, aliás mal conhecida no Brasil, está cheia desses exemplos de integração social. É co-natural ao português misturar-se com os outros povos, procurar valorizar-se em parceria ou em comunhão de vida. Julgo que essa sabedoria quase milenar resulta de vários fatores socio-económico-políticos e até genéticos. Portugal, como Nação tem quase 900 anos, mas no seu actual território viveram antes vários povos e culturas que se foram misturando, deixando uma marca de pluri-etnicidade genética que forma o sangue lusitano. Partindo para o mundo do ultramar à procura de novos espaços de realização e de produção os portugueses só podiam instalar-se aí e terem sucesso se mantivessem boas relações locais. Como pequeno povo não poderia ser de outra forma, nem darmo-nos à arrogância ou violência. Claro que houve na nossa história episódios de brutalidade e submissão pela força, mas não foram eles a marca essencial da nossa cultura de relação com os outros.

SempreVasco - Além de ter símbolos de Portugal em seus aspectos culturais como o hino, o escudo e a bandeira, recentemente, a diretoria lançou uma camisa de goleiro, que reproduz as cores da bandeira lusa. Como o senhor vê tal medida em homenagem à colônia portuguesa?

António de Almeida Lima - Achei uma ideia muito simpática e que aposta na identificação com as suas origens, o que para além de um gesto de justiça para com a herança lusitana, sublinha o caráter quase binacional do clube, convocando os portugueses a reunirem-se também sob a bandeira do “Vasco”.

SempreVasco - Enquanto houver Vasco, uma bandeira portuguesa irá tremular na nossa sede, assim como tremula na Embaixada portuguesa do Rio de Janeiro, território português no Brasil. Quando o senhor entra em São Januário, também se sente em casa?

António de Almeida Lima - Assisti uma vez à celebração do 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em São Januário, hasteando a bandeira de Portugal junto com a do Brasil, perante os alunos das escolas do “Vasco”. Não esquecerei essa cerimónia que, para mim, representou a alma do clube e me fez sentir em casa.

SempreVasco - Em recente entrevista ao SEMPREVASCO.COM, o português e melhor jogador de futebol de praia do mundo, João Victor Saraiva - Madjer -, relatou-nos sua paixão pelo Vasco, mesmo do outro lado do Atlântico. Quando vem ao Rio de Janeiro, ele sempre visita São Januário, já tendo feito-o por duas vezes. Em Portugal, o Vasco é conhecido pelo povo português?

António de Almeida Lima - É, mas podia e devia ser mais. Aí está um desafio para as atuais gerações vascaínas. Dar a conhecer o “Vasco” mais no mundo da língua portuguesa será uma aposta que estou certo trará dividendos ao clube.

SempreVasco - Em 1947, em visita da delegação vascaína a Portugal para uma série de quatro amistosos, o presidente de então, Cyro Aranha, recebe do Estado português, o título de comendador da Ordem Militar de Cristo, pelos serviços prestados à luso-brasilidade. Em 11 de setembro de 1954, o Embaixador de Portugal fixa na bandeira vascaína a Comenda da Ordem Militar de Cristo, em uma linda cerimônia na Sede Náutica da Lagoa. Tal distinção foi ofertada ao Vasco também pela sua relevante obra de luso-brasilidade. Hoje, o Vasco cita, com orgulho, no rodapé de seus documentos oficiais esta Comenda, ao lado da sua data de fundação. Esses dois fatos representam bem a importância do clube nas relações portuguesas no Brasil?

António de Almeida Lima - Mas é claro. As instituições oficiais de ambos os países estão atentas a isso. A relação de Portugal e dos portugueses com o Rio, conta hoje, como no passado, com o prestígio e o exemplo do “Vasco”.

SempreVasco - Apenas no Brasil, somos cerca de 20 milhões de adeptos, quase duas vezes a população de Portugal - segundo estimativas de 2008. Somos a maior instituição fundada por portugueses em todo o planeta, um povo que colonizou e deixou obras em todos os cantos do globo. Como o senhor avalia a importância do Vasco como instituição luso-brasileira?

António de Almeida Lima - Considero-a essencial na história da imigração portuguesa para o mundo e na continuada presença da herança lusitana neste país irmão. Sem o “Vasco”, Portugal e os portugueses estariam mais pobres como julgo que também o Brasil. A dimensão e o exemplo do “Vasco” são uma reserva de prestígio para a comunidade portuguesa aqui e as autoridades portuguesas não podem ignorar isso. Num momento em que essa comunidade vai envelhecendo – há já várias décadas que pararam os fluxos migratórios portugueses para cá - é importante que os seus descendentes continuem a ver no “Vasco” o símbolo das suas raízes.

SempreVasco - Sabemos que no Brasil, o senhor é um adepto do Vasco. Para qual clube, o senhor torce em Portugal?

António de Almeida Lima - Sou Benfica desde sempre. O meu pai nasceu no bairro de Benfica, em Lisboa (mais uma conexão luso-brasileira) e foi dos primeiros sócios do clube. Estas heranças podem ter muita força.

SempreVasco - O Vasco em uma palavra.

António de Almeida Lima - Exemplo.

SempreVasco - Deixe um recado final aos portugueses e vascaínos leitores do SempreVasco.com.

António de Almeida Lima - A história do “Vasco” é exemplar e repleta de sucessos. O mais importante de todos é a vitória da igualdade e da dignidade contra a discriminação e a exclusão social. Aos actuais sócios, dirigentes, atletas, jogadores e simpatizantes do clube cabe a honra de dar sequência a estes príncipios e dentro do são espírito desportivo, re-afirmar, sempre, o “Vasco” como escola de valores e como agremiação que, como ontem, quer mostrar que vencer é uma questão de atitude, de respeito pelos outros e de esperança num mundo melhor. Essa é a história dos imigrantes lusos no Rio de Janeiro. Essa é a matriz do “Vasco da Gama”.


Cônsul-Geral de Portugal António de Almeida Lima


Fonte: Sempre Vasco

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