Não bastassem as muitas glórias que o Expresso da Vitória já havia conquistado nos cinco anos anteriores, cume alcançado em terras chilenas, com o título inédito da América, foi na noite de uma quarta-feira, dia 25 de maio de 1949, que o torcedor vascaíno teve mais um motivo pra se orgulhar do clube por que torcia. Não era um simples amistoso. Estavam em jogo dois estilos distintos de se jogar futebol: um que privilegiava a tática e o conjunto, que dava pouca importância ao drible, contra outro, às vezes individualista, mas repleto de improvisação e surpresas.
Assim era visto aquele confronto contra o Arsenal, primeiro time inglês de ponta que nos brindava com uma visita em solo nacional[1]. Este fantástico duelo receberia a seguinte manchete naquele dia no Jornal dos Sports: "Vasco x Arsenal, choque de duas escolas". A agremiação londrina, principal equipe do futebol inglês, que dominou os anos 30, vencendo cinco Campeonatos e uma Copa da Inglaterra, e que, depois da 2ª Guerra Mundial[2], despontava novamente no topo do panorama futebolístico de seu país, havia sido campeã na temporada anterior (1947/1948) e chegava com a pompa de ser um dos maiores times da Europa.
Depois de estrear no Rio de Janeiro, contra o Fluminense, quando conseguiu uma goleada de 5 a 1 para cima do Tricolor das Laranjeiras, os Gunners foram até São Paulo para mais dois embates contra os principais times do Brasil. Diante do Palmeiras, vice-campeão paulista de 48, os ingleses saíram na frente e somente depois de muita luta o Alviverde conseguiu a igualdade. Quatro dias depois, seria o Corinthians o adversário a ser batido. Depois de um tempo inicial insosso, a velha objetividade inglesa ressurge na etapa derradeira e a vitória vem com tranquilidade: 2 a 0 no Timão.
Era nesse cenário que seria jogada o que muitos jornalistas chamaram de a partida do século até aquele momento. Era o Expresso da Vitória, o melhor das Américas, contra o mais poderoso time da Inglaterra, país que se orgulhava de ter inventado o futebol e que se auto-proclamava como melhor do mundo nessa modalidade. Pela importância do jogo, até Nereu Ramos, Vice-Presidente do país, em exercício da Presidência da República, esteve presente à peleja.
Dois dias antes os ingressos de cadeira já haviam se esgotado e a expectativa de quebra de recorde de renda e público em âmbito nacional era tida como certa. E se confirmou: mais de 1 milhão e 146 mil cruzeiros arrecadados, com um público estimado de mais de 45 mil pagantes. Alguns jornais chegaram a divulgar que estaria presente naquela noite uma platéia de 60 mil pessoas, certamente a maior de todas desde a inauguração do estádio de São Januário em 1927.
Além da sufocante atmosfera que envolvia o cotejo, ainda havia a possibilidade de se assistir a estreia de Heleno no Vasco, ele que fora recém-contratado ao Boca Juniors depois de uma temporada polêmica no futebol argentino. Se o campo era "nosso", o juiz era inglês. Mas Cyril John Barrick, radicado no Brasil desde o ano anterior, era uma pessoa acima de qualquer suspeita e sua confirmação no apito era a certeza de termos um jogo muito bem arbitrado.
O Jogo
Quando Jack' Barrick trilou o apito, o que se viu foi o Vasco da Gama partindo pra cima do Arsenal com toda a força. Nada tirava da cabeça daqueles onze homens que estavam em campo com a camisa cruzmaltina que aquele seria mais um dia inesquecível para a família vascaína. Bater os "Reis do Futebol" seria como roubar-lhes a coroa. No primeiro tempo, apesar da pressão constante, foram poucas as chances claras. Os Gunners tiveram dois bons momentos com Lishman chutando violentamente para a ótima defesa de Barbosa e com McPherson completando mal um bom cruzamento que havia recebido. Do lado do Almirante, Ipojucan e Ademir, por duas vezes (na primeira a galera chegou a gritar gol, tal a velocidade do chute e a pouca distância em que a bola passou da meta), tiveram os lances mais agudos em seus pés.
No tempo final, depois de um início onde parecia que os ingleses estavam conseguindo cadenciar o jogo, segurando o ímpeto do adversário, a platéia sente o clima e pede a entrada de Heleno. Flavio Costa não titubeou, lançando Gilda'[3] no lugar de Ipojucan. Ao mesmo tempo, Mario substitui Tuta. As alterações fazem efeito e o Gigante da Colina volta a massacrar. Os instantes de perigo se sucedem: Heleno deixa Nestor na cara do gol, mas ele erra. Depois disso, o ex-botafoguense faz uma falta dura e é cercado pelos ingleses. Gilda arranca livre, mas Barrick assinala banheira duvidosa. Mais uma vez Heleno perde ótima oportunidade. O Arsenal só se defende. Barbosa fica solitário em seu campo. Nestor, Ademir e Maneca desperdiçam bons ataques. Aos 27 minutos, Heleno de novo chuta por cima do poste. Mario cruza e mais uma vez Heleno erra o alvo.
Mas faltando doze minutos para o fim acontece o lance que entraria para os almanaques: Mario pela ponta esquerda cruza na área. A zaga inglesa sobe toda e muito alto. A bola é levemente desviada por Barnes e sobra nos pés de Heleno. Marcado, ele toca para Nestor fuzilar enviesado, quase sem ângulo, com raiva, num misto de chute e cruzamento. Ademir ainda faz um corta-luz e pronto! Gol!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Finalmente a massa cruzmaltina solta aquele grito gostoso da garganta. Estava batida a meta adversária. A comemoração entre os atletas foi tão intensa que o autor do tento teve de ser atendido pelo médico, pois ficara tonto.
Nas arquibancadas, mulheres se agarravam e se beijavam, enquanto foguetes eram lançados para céu no meio dos torcedores. Décadas depois desse episódio, alguns jogadores adversários afirmaram ter sido aquele gol o mais comemorado e da forma mais ensandecida pelo público como jamais haviam vivenciado em suas carreiras. Depois de tanto esforço e persistência, o prêmio merecido veio. Não houve reação. Os Gunners estavam arriados. O futebol inglês, representado por um de seus gigantes, era pela primeira vez derrotado em terras tupiniquins. E pelo grande Expresso da Vitória do Club de Regatas Vasco da Gama, que mais uma vez entrava para a história pelo seu pioneirismo em mais um triunfo memorável dentro dos gramados.
Notas:
[1] Corinthians Casuals, Exeter City, Motherwell, Chelsea e Southampton estiveram no Brasil em épocas anteriores à visita do Arsenal. Porém, não eram consideradas equipes de primeira linha no futebol inglês quando aqui vieram.
[2] O Campeonato Inglês não foi disputado da temporada 1939/1940 até a de 1945/1946 em virtude da 2ª Guerra Mundial.
[3] Devido à sua personalidade forte, Heleno de Freitas ganhou, na época, o apelido de "Gilda", numa referência à personagem (de temperamento também difícil) do filme de mesmo nome estrelado pela atriz Rita Hayworth.
Ficha Técnica
VASCO DA GAMA 1 X 0 ARSENAL-ING
São Januário, quarta-feira, 29 de maio de 1949.
Horário: 21 horas (1º tempo: 21h05min; 2º tempo: 22h06min.)
Renda: CR$ 1.146.500,00
Público: 45.000 pagantes (aproximadamente)
Árbitro: Cyril John Barrick
Auxiliares: Mário Vianna e Alberto da Gama Malcher
Gol: Nestor aos 33' do 2º tempo.
VASCO: Barbosa, Augusto, Sampaio; Ely, Danilo, Jorge; Nestor, Maneca, Ademir, Ipojucan (Heleno 14'/2ºT) e Tuta (Mário 14'/2ºT). Técnico: Flavio Costa.
ARSENAL: Swindin, Barnes, Smith; Macaulay, Daniel (Fields 30'/1ºT), Forbes; McPherson, Logie, Rooke, Lishman e Vallance. Técnico: Tom Whittaker.
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Galeria
Crônica
, do Site de Mauro Prais.
Agradecimentos ao pesquisador Alexandre Mesquita.
Fonte: NETVASCO (texto), Jornal dos Sports (ficha, estatística, fotos), Esporte Ilustrado (fotos), Site oficial do Arsenal (foto), Site Mauro Prais (fotos), Site Murilo Brasil (charge)