Pais e treinadores relatam as dificuldades da base; 'Maradoninha', de 11 anos, trocou o Fluminense pelo Vasco
Terça-feira, 19/02/2019 - 03:21
O glamour do futebol passa longe do campo do União, no bairro Grande Rio, em São João de Meriti. "O gramado é bom para os laterais", brinca uma pessoa no local, referindo-se ao fato de só as beiradas terem grama. Ainda assim, o jogo entre o sub-15 da casa e o da Portuguesa alimenta sonhos. Ao redor, familiares hipnotizados pelos jovens atletas ignoram a nuvem de mosquitos que não dá trégua a braços e pernas. Dentro das quatro linhas, garotos de 14 e 15 anos tentam fazer o melhor na esperança de um dia chegarem ao estrelato. Mas sabem que o caminho é tão esburacado quanto aquele terreno.

O brilho dos astros da bola ofusca a base da pirâmide, onde um olhar mais atento revela desafios. Dois dos mais comuns são a solidão e a saudade de casa. No centro das atenções após o incêndio no Ninho do Urubu, os alojamentos reúnem atletas a partir dos 14 anos que deixam suas cidades ou estados e abrem mão do convívio com os pais por um sonho.

Jovens de idades e personalidades diferentes passam a formar sua própria família. A maioria possui origem humilde. E carrega sobre as costas a missão de transformar não só sua vida, mas a de pais e irmãos.

— Há jogador que não quer voltar para casa nas férias, prefere ficar. Diz que, lá, não tem o que comer. E no clube eles têm comida e cama — conta Sônia Román, que atuou como psicóloga do Santos por 12 anos. — Conheci atleta que morava em casa sem nem mesmo um piso, com chão de terra batida.

Embora, por lei, os clubes só possam alojar jovens com pelo menos 14 anos (idade a partir da qual pode-se fazer contrato de formação), há categorias para idades inferiores. Elas também reúnem jogadores de todo o país. Para muitos pais, a solução neste caso é mudar-se com o filho. E largar tudo para trás.

'MARADONINHA'

Nos arredores do CT usado pela base do Fluminense, em Xerém, a vida gira em torno do futebol. Dona de uma pequena lanchonete ao lado do clube, Márcia de Deus abandonou, há quatro anos, a vida de pecuarista em Cuiabá para se mudar com o marido e o filho Rafinha, convidado pelo tricolor na época. Hoje, ele treina no sub-15 do Boavista.

Evandro Sousa e a mulher Aline vieram de mais longe. Há dois anos, deixaram Palmas (TO) para o filho Leandro "Maradoninha" treinar no Fluminense. Hoje, aos 11, ele defende o Vasco e já possui empresário, que custeia sua permanência e a dos pais no Rio. Eles esperam se mudar para São Januário em breve, mas ainda vivem num condomínio, em Xerém. Dos 26 apartamentos que compõem o local, apenas um não é ocupado por uma família de aspirante a boleiro.

— As pessoas costumam achar que, arrumando um clube no Rio ou em São Paulo, vão ganhar dinheiro. Aí descobrem que não é nada disso. Nós ainda temos um investidor para o menino. Mas a maioria passa sufoco — conta Evandro.

O primeiro contrato profissional só é assinado aos 16 anos. Mas muitos ficam pelo caminho antes. Na base, a dispensa é até mais comum do que o sucesso. Uma dura lição.

— É claro que ele fica triste, mas aprende a lidar desde cedo com decepções. E eu preciso explicar que frustrações fazem parte da vida. Além de pai, sou psicólogo — conta Robert Neves, que também foi jogador e, mesmo tendo conhecido todas estas adversidades, não desestimula o filho João Pedro, do sub-15 da Portuguesa. — Se é o sonho dele, então é o meu.

LIMITAÇÃO FINANCEIRA

Na Portuguesa, as limitações batem à porta. Não há nem mesmo um campo próprio. Para ajudar o filho Gabriel a realizar o sonho de de ser goleiro, Ernesto Vandré paga academia e um preparador de goleiros particular. Ele ainda o leva a treinos e jogos, o que exige tempo e combustível.

— O futebol vem deixando de ser um esporte democrático. Você gasta muito dinheiro — conta Vandré, ex-caminhoneiro que, hoje, aluga seu caminhão para ter tempo para o filho. — Minha renda caiu pela metade. O que nos mantém estáveis é que minha mulher tem um bom emprego.

A conta é alta. Ele calcula em torno de R$ 3 mil mensais. Na Portuguesa, como na maioria dos clubes pequenos, exames médicos e odontológicos são pagos pelos pais, assim como a taxa de arbitragem dos jogos, o registro do atleta na federação e, claro, as chuteiras. Fora a alimentação. Até mesmo água é preciso levar de casa.

— Não fossem os pais, não conseguiríamos levar isso adiante — admite Custódio Júnior, treinador do sub-11 até o sub-15 do clube da Ilha do Governador.

Aos 48 anos, praticamente todos vividos no futebol, Júnior chamou para si a responsabilidade de manter de pé esta parte das divisões de base da Portuguesa (do sub-16 para cima é terceirizado). Os uniformes, ele consegue com comerciantes em troca de estampar a marca nas camisas. E é na própria casa que ele lava todas as peças.

Para arcar com custos como material de trabalho, remuneração de outros funcionários, aluguel de campos e inscrição em campeonatos, é preciso passar o chapéu entre os pais.

— Não tenho vergonha de dizer que cobro mensalidade. Senão, a base não sobrevive — admite. — Faço isso para ajudá-los a virar cidadãos.

A frase de Júnior é uma das mais batidas do futebol. Mas não perde a força. No time do União, o pequeno e franzino camisa 18 atende pelo apelido de "Come Lixo". Cauan tem 10 anos e é conhecido por todos nas redondezas do clube. Com uma estrutura familiar quase inexistente dentro de casa, ele passava a maior parte do tempo nas ruas. Há três anos, foi apadrinhado pelo responsável por fazer a manutenção do clube, Seu Vando, que lhe oferece refeições e tenta educá-lo.

— Era muito agressivo. Xingava na rua, pedia dinheiro e baixava os shorts para as meninas. Um dia falei que precisava respeitar as pessoas e ele me perguntou o que era isso — conta Vando.

Cauan tem treinado no União e participa de jogos amistosos. Ele se sai melhor na função de cabeça de área. Mas, neste caso, virar um astro é o menor dos objetivos.

— Tem tanta gente velha que deixa o caminho errado. Por que ele, ainda uma criança, também não pode? — reflete Vando.

A educação, por sinal, é um dos maiores desafios. Embora cobrem a matrícula na escola, pois são exigidos por lei, os clubes não fazem um monitoramento com afinco. A falta de interesse somada à disputa de campeonatos atrapalha o desempenho dos meninos.

E, quando estes completam 18 anos, já não são mais obrigados a frequentar o colégio. Na maioria da vezes, abandonam os estudos. Se não vingam com a bola nos pés, quando desistem da carreira se veem desempregados e sem preparo.



Fonte: O Globo Online