Guias organizam passeios a São Januário para contar a história do Vasco, do Rio de Janeiro e do Brasil
Mesmo com a Rua Camerino no seu caminho até o trabalho, o produtor de eventos Rodolfo Leite nunca tinha olhado para cima e notado a existência de um jardim suspenso. Nem ouvido falar de tias negras riquíssimas que, no século XIX, tinham grande influência na cidade. Essas descobertas, ele só fez durante uma caminhada pela Pequena África, em que conheceu uma das regiões mais antigas do Rio e ouviu histórias sobre as mulheres africanas que passaram por ali. Hoje, os walking tours conquistaram cariocas com revelações e curiosidades que, em geral, não estão nos livros didáticos. Para quem chega de fora, também é uma chance de conhecer o Rio fora de circuitos turísticos tradicionais.
— Os passeios em grupo são uma forma de explorar a cidade a pé com segurança — diz a guia Luana Ferreira, que criou roteiros pela Pequena África, na Zona Portuária.
Ela faz parte do time de guias da empresa Sou+Carioca, incubadora do programa Rio Criativo, que já lançou mais de 150 passeios pouco usuais, que vão de temas como "Vasco da Gama" a "Doces histórias", dedicado a delícias como o brigadeiro.
A historiadora Monique Goldfeld acaba de liderar o "Rio dos diplomatas e militares" e prepara o "Rio judaico", já anunciado nas redes sociais. Para os fãs de Clarice Lispector, a biógrafa Teresa Montero traçou caminhos "claricianos". O professor João Baptista Ferreira de Mello, da Uerj, oferece passeios gratuitos pelo projeto "Roteiros geográficos". Tem programa até para o feriadão de Finados: que tal bater perna pelo Cemitério do Catumbi?
Doces histórias: tour recheado de gordices'
Natural do Rio, o brigadeiro nasceu durante uma eleição: com o objetivo de arrecadar recursos para a campanha do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência, em 1945, Dona Heloisa Nabuco de Oliveira criou o docinho, vendido por elegantes senhoras. A patente militar acabou batizando a invenção. Essa e outras curiosidades sobre nossos doces são contadas durante um tour por confeitarias antigas do Centro, criado pela guia Raquel Oliveira, que começa o passeio explicando a origem do açúcar, que surgiu na Índia, feito do extrato do melado da cana.
Entre uma parada e outra em casas como Colombo e Manon, o público vai degustando histórias saborosas:
—O quindim é uma variação da receita portuguesa brisa de lis, feita com amêndoas. Aqui, as negras das cozinhas substituíram as amêndoas por coco. E quindim é um nome africano que significa dengo — ensina a guia, filha de uma ex-boleira e que já enrolou muito docinho com a mãe.
O trajeto começa na Cinelândia, segue pela Praça Quinze e depois Colombo, Manon, Cavé e Itajaí.
Matriarcas da Pequena África: as tias negras
Em noites de samba, um símbolo feminino que fica bem no meio do Largo da Prainha pode passar despercebido: a estátua de Mercedes Baptista é uma homenagem à primeira bailarina negra do Teatro Municipal, que criou as alas coreografadas nas escolas. No roteiro da guia e historiadora Luana Ferreira, as pessoas são convidadas a conhecer a Pequena África pela perspectiva das mulheres. Ela usa o conceito de GMater — gestão matriarcal —para falar das tias que, no século XIX, formavam uma rede de proteção e ganhavam (muito) dinheiro com seus quitutes.
— O Rio de Janeiro comia nas mãos das tias pretas — explica a guia, dizendo que estas mulheres custeavam alforrias, irmandades religiosas e até a educação de filhos na Europa.
No Morro da Conceição, vêm as memórias de Tia Ciata e de Tia Perciliana, mãe de João da Baiana, do Largo da Pedra do Sal. Ainda é possível explorar a área com foco na capoeira, em outro tour.
O trajeto percorre locais como o Museu de Arte do Rio (MAR), Largo da Prainha, Pedra do Sal, Jardim e Cais do Valongo.
Vasco da Gama: política, samba e futebol
Fanático pelo Fluminense, Arthur Gabriel é hoje um dos guias que fazem passeios pelo Vasco da Gama e seus arredores. A paixão pela história e pelo futebol faz com que ele supere qualquer rivalidade: São Januário foi palco de eventos marcantes, que vão de discursos de Getúlio Vargas no 1º de maio a desfile das escolas de samba. O estádio foi transformado em passarela no ano de 1945, quando a Portela foi a campeã.
No trajeto, Arthur e Cris Oliveira, professora de história, contam que a região, de essência portuguesa, perdeu muito do prestígio com o fim do Império, ganhando ares proletários. Em São Januário, há um conjunto de casas para jogadores, no estilo das vilas operárias.
— O clube (de 1898) foi fundado por brancos pobres e ex-escravos. Nessa época, o mar batia na Igreja de São Cristóvão e se praticava remo na região — diz Arthur, que também faz um tour pelas Laranjeiras.
O percurso termina (claro) com bolinho de bacalhau.
O trajeto explora São Januário, como o campo e o vestiário, e segue pela Barreira do Vasco até o Bar Adonis.
Cemitério do Catumbi é mais que um assombro
No dia 3 de novembro, após o feriado de Finados, os doutores João Baptista Ferreira de Mello, do Instituto de Geografia da Uerj, e Olga Maria Figueiredo, especialista em necrogeografia (que estuda a geografia de cemitérios), vão levar o público para uma viagem entre tumbas e histórias de mortos. O tour será no pouco (ou nada) badalado Cemitério do Catumbi, de 1850, onde estão sepultados ícones como Chiquinha Gonzaga, Wilson Batista — no jazigo da Associação de Compositores — e Ataulfo Alves. João conta que Duque de Caxias, antes de ir para o seu panteão, na Presidente Vargas, também foi enterrado lá.
A ideia é que a caminhada seja feita à noite. Mas não precisa ter medo de fantasma.
— O Catumbi tem uma arquitetura de cemitério parque', para as pessoas fazerem piqueniques, passearem — jura o professor. — A parte mais alta, perto da igrejinha de Nossa Senhora de Nazaré, era para os nobres: lá, eles estão mais perto do divino.
O tour segue pelos túmulos de famosos e avenidas do cemitério até a parte alta, onde fica a capela.
No Rio de Clarice, o dia a dia da escritora
Boa parte do tempo em que passou no Rio a escritora Clarice Lispector morou no Leme. Vivia o dia a dia do bairro: ia à banca de jornal, à feira, à padaria, passeava com o vira-lata Ulisses na Praça Júlio de Noronha e comprava pilhas para o rádio e cigarros no botequim. Quando precisava de tempo para pensar, dormia em um hotel da Rua Gustavo Sampaio. Seus últimos 18 anos foram no Leme, onde chegou em 1959. Ela morou em dois edifícios, nas ruas General Ribeiro da Costa e Gustavo Sampaio.
O bairro é a estrela do passeio criado há dez anos pela biógrafa da escritora, Teresa Montero (que, a propósito, mora no Leme). Do tour, nasceu um livro, que ela acaba de lançar: "O Rio de Clarice" (Editora Autêntica). O guia nas livrarias conta com sete caminhos "claricianos", como o Jardim Botânico, que era pura inspiração para a escritora.
— É como se as pessoas pudessem entrar no túnel do tempo e ver o Rio sob o olhar da Clarice —afirma Teresa.
O roteiro completo passa por Tijuca, Centro, Catete, Botafogo, Cosme Velho, Jardim Botânico e Leme.
Memória judaica por trás das fachadas
A Praça Mauá, local de desembarque de imigrantes no passado, é o ponto de partida do roteiro, um dos últimos traçados pela historiadora especialista em relações internacionais e Oriente Médio Monique Goldfeld. Judia, Monique vai revelando no caminho até a Cinelândia histórias escondidas de outros judeus (famosos ou não) por trás das fachadas dos edifícios.
Monique ressalta que o Edifício Avenida Central, o primeiro com estrutura de aço, alumínio e vidro do país, de 1961, foi projetado pelo arquiteto judeu Henrique Mindlin.
— Em frente ao Banco Central, explico por que há muitos judeus no ramo financeiro. Em muitos lugares, os judeus eram proibidos de ter profissões — diz a historiadora, que iniciou o tour como aulas a céu aberto para seus alunos da Fundação Getúlio Vargas, em 2011.
O percurso termina na Livraria Cultura, fundada por judeus:
— No final, indico livros sobre o tema do passeio.
O trajeto começa na Praça Mauá, percorre a Avenida Rio Branco e termina na Cinelândia.
Fonte: O Globo