Se as taças da sala do Botafogo falassem, uma em especial seria a mais tímida de todas. No espaço onde estão eternizadas centenas de conquistas, o troféu oficial do Campeonato Carioca de 1990 não traz em seu DNA o batismo de uma volta olímpica.
Mesmo legítimo e com as marcas do suor alvinegro, um troféu ganha vida quando é exposto ao mundo pelas mãos do capitão. E, diferentemente dos outros que estão em General Severiano, o conquistado pelo Botafogo na final contra o Vasco da Gama não pôde passar pelos sagrados rituais no dia 29 de julho daquele ano.
- Infelizmente não tivemos um casamento com a taça do Campeonato no dia da conquista, dar a volta olímpica com ela, mas em momento nenhum isso tirou a nossa alegria, tirou o brilho do título. A emoção foi total - relembrou Wilson Gottardo após erguer o troféu oficial 28 anos depois.
Na última sexta-feira, às vésperas de mais uma final, o ex-zagueiro e capitão do time bicampeão carioca de 1990 esteve na sede do Botafogo para reviver detalhes de uma noite que entrou para a história do futebol do Rio de Janeiro. Pela primeira vez duas equipes comemoraram o mesmo título e deram cada um a sua volta olímpica no gramado do Maracanã.
Em campo, o Botafogo venceu por 1 a 0, com gol de Carlos Alberto Dias. Mas para o Vasco e para a Federação Carioca de Futebol, o placar não era suficiente para os alvinegros se proclamarem como legítimos vencedores do Estadual. O jogo ainda teria que ter uma prorrogação.
O árbitro Claudio Garcia aguardou a volta dos jogadores do Botafogo que já festejavam, mas foi informado por Wilson Gottardo que o time não voltaria. Para o Vasco o ato se tratou de um abandono e o time de São Januário também resolveu comemorar.
- Eu já tinha dado a minha camisa de presente para um amigo que estava no campo. Precisei pedir de volta porque o árbitro me chamou para conversar sobre a prorrogação. Eu falei com ele e com o Roberto Dinamite que já dávamos o jogo por encerrado e que nós éramos os campeões - contou Gottardo.
Os dois times tinham interpretações diferentes do regulamento, mas o Vasco contava com o aval da Federação Carioca. No entendimento do Botafogo bastava uma vitória simples para garantir o segundo título consecutivo. Um empate levaria o jogo para a prorrogação. Já para o Vasco, o time tinha a vantagem do empate, e mesmo em caso de derrota o jogo teria que ir para a prorrogação. Inconformado e temendo ser prejudicado, o Botafogo entrou com uma liminar na justica para impedir que a taça fosse entregue após o jogo decisivo, independentemente do resultado.
- A vantagem era do Botafogo. Juridicamente o Botafogo estava muito bem embasado. Nós estudamos o regulamento e já estava decidido taxativamente que o Botafogo vencendo não haveria prorrogação. Foi isso que nos foi passado pela diretoria - relembrou Gottardo.
O surgimento de uma taça inesperada
A Taça oficial não foi para o estádio e toda a polêmica fez com que apenas 35 mil torcedores testemunhassem uma final que acabaria sendo decidida nos tribunais. Mas o que ninguém esperava era que um outro troféu surgisse à beira do gramado aos 40 minutos do segundo tempo.
Nas mãos do radialista Luiz Fernando Bonan, o troféu era um prêmio oferecido por uma rádio da cidade de Nova Friburgo ao vencedor da partida. O radialista só não imaginava os efeitos que isso causaria.
- Eu fiquei próximo ao túnel central e fui abordado por diversos jornalistas que queriam saber que troféu era aquele, se era o troféu da Federação, e eu disse que era a "taça cidade Nova Friburgo". Então eu entro no gramado, chamo o capitão Wilson Gottardo e faço a entrega do troféu ao vencedor do jogo, não era para o campeão, mas sim para o vencedor. Mas naquele momento, os jogadores do Vasco observam aquela cena, olham para a geral e veem um torcedor com uma caravela. O Botafogo resolveu dar a volta olímpica com o nosso troféu e o Vasco também deu a sua volta olímpica com a caravela, mas eu não tinha a menor noção que causaria toda aquela confusão.
Mas só o Botafogo realmente tinha razão em comemorar. Doze dias depois, o alvinegro foi oficialmente reconhecido como bicampeão carioca através da decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva. A verdadeira taça só chegaria ao Botafogo no dia 28 de agosto, sendo apresentada e interrompendo a séria conversa do treinador Joel Martins com o elenco em Marechal Hermes. Enfim, ela chegou para trazer brilho e um pouco de paz para um time que já vivia a pressão por ter perdido os dois primeiros jogos do Campeonato Brasileiro.
A cronologia da polêmica
6/12/1989 – Conselho arbitral aprova regulamento com texto conflitante. Um parágrafo diz que campeões de turno se enfrentam e o vencedor da partida disputa título contra time de melhor campanha. Outro diz que associação com maior número de pontos na fase final será campeã.
7/5/1990 – Em reunião do conselho, é sugerido que os três clubes classificados para a fase final (Botafogo, Fluminense e Vasco) cheguem a um acordo entre si. Dono da melhor campanha, Alvinegro entende que jogo entre Cruz-Maltino e Tricolor serviria apenas para definir adversário e não contaria pontos. Rivais não concordam.
13/6/1990 – Botafogo é derrotado por 11 votos a um em votação do conselho. Clubes decidem que Vasco x Fluminense contaria pontos e vencedor entraria com vantagem contra Alvinegro.
18/6/1990 – Botafogo recorre, mas federação ignora recurso e mantém posição do conselho
1/7/1990 – Bota recorre à CBF. Dias depois, entidade diz não ter competência para julgar o recurso.
16/7/1990 – Alvinegro aciona STJD. Dias depois, para evitar manobra do Vasco, entra com mandado de garantia para que federação fosse impedida de proclamar campeão independentemente do resultado da partida
29/7/1990 – Botafogo vence no tempo normal e comemora título. Vasco e juiz esperam pela prorrogação, que Alvinegro recusa a disputar. Cruz-Maltinos festejam título. Federação do Rio desfilia Bota da entidade por ter "abandonado campo".
9/8/1990 - STJD confirma Botafogo como campeão estadual de 1990
Fonte: GloboEsporte.com