Em 1958, Vasco se sagrou supersupercampeão carioca; conheça a história
Terça-feira, 27/03/2018 - 14:39
Sessenta anos atrás, diferentemente deste campeonato carioca mixuruca de 2018, o Rio vibrou em 1958 com o Estadual mais espetacular da sua história. Doze dos 22 jogadores que se consagraram campeões do mundo em junho, na Suécia, já em julho entravam em campo — no Maracanã, em Moça Bonita, em Campos Salles, em Conselheiro Galvão ou no alçapão da Rua Bariri — para começar um campeonato que terminaria em dezembro, com Flamengo, Botafogo e Vasco empatados na liderança. Foram para um triangular, e outra vez terminaram juntos. O Vasco venceu o segundo triangular num jogo com o Flamengo, com 130 mil pessoas no Maracanã, e ganhou o título, único na história, de supersupercampeão carioca.

Os juízes ainda não tinham cartões para distribuir (expulsavam apontando o dedo para o túnel) e permitia-se a substituição apenas do goleiro (e somente em caso de contusão). Os arqueiros, a propósito, jogavam de joelheiras. Todos os técnicos começaram e acabaram o torneio nos seus postos. Eram figuraças: o irascível Yustrich no América, o comunista João Saldanha no Botafogo, o "humilde" Gradim no Vasco, o paraguaio Fleitas Solich, desde 1953, no Flamengo, o estrategista Zezé Moreira, introdutor da "marcação por zona", no Flu, e o folclórico Gentil Cardoso, autor da frase "Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência", no Bangu.

As torcidas estavam tão dispostas a simplesmente se divertir que a do Vasco era chefiada por uma pacata dona de casa, Dulce Rosalina, e a do Flamengo por um certo Jaime de Carvalho e sua charanga de marchinhas. Na edição após o jogo final, O GLOBO registrou não ter havido atendimentos especiais no posto médico ou nas delegacias. O atacante Valdemar, do Vasco, foi caminhando até São Januário, ainda com o uniforme do jogo, enquanto recebia nas ruas os aplausos dos vascaínos e o silêncio civilizado dos rubro-negros.

COMO UMA CHAMPIONS LEAGUE

Nunca houve um campeonato como aquele, e estiveram em campo, como se fosse um jogo da Champions League de hoje, craques como Joel, Moacir e Dida, pelo Flamengo, Vavá, Bellini e Orlando, pelo Vasco, Didi, Garrincha, Zagalo e Nilton Santos, pelo Botafogo, Zózimo, pelo Bangu, e Castilho, pelo Fluminense, todos recém-campeões do mundo na Suécia. Os coadjuvantes eram Telê, do Fluminense, futuro técnico da seleção brasileira; o temperamental Almir Pernambuquinho (também chamado "Divino delinquente"), do Vasco, que morreria assassinado num tiroteio na Galeria Alaska, em Copacabana; Pompeia, o goleiro das pontes espetaculares, no América; ou o diminuto Babá, 1,54m, na ponta esquerda do Flamengo. Outras estrelas: Valdo, Altair e Jair Marinho, no Fluminense; Paulinho Valentim e Quarentinha, no Botafogo; Jadir e Dequinha, no Flamengo; e Sabará e Pinga, no Vasco.

Talentos aos montes, finalmente uma geração vitoriosa. Num daqueles jogos do campeonato carioca de 1958, o Flamengo meteu 8 a 0 no Olaria, e Nelson Rodrigues, na "Manchete Esportiva", escolheu Dida, autor de seis gols, como destaque da seção "Meu personagem da semana". Lembrou no texto que Leônidas da Silva, o Diamante Negro, a maior glória do futebol até então, chamara o atacante de perna de pau:

"Qualquer paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade. Perguntem a uma zebra do Jardim Zoológico: ‘Dida é um perna de pau?', e a zebra responderá com uma ênfase tremenda: ‘absolutamente! absolutamente!' Leônidas, craque do passado, quer ser ainda o maior. Sofre com os ‘diamantes negros' ou ‘brancos' ou ‘morenos' da atualidade. A glória alheia, em futebol, o ofende e humilha. E, por isso, meteu o pau em Dida. Era como se dissesse: ‘Ah, os meus tempos!'"

Foi um campeonato à altura do novo orgulho futebolístico, com o Maracanã recebendo oito jogos com público acima de cem mil pessoas, e é uma pena que o videoteipe ainda não tivesse chegado aqui. Do supersupercampeonato restaram apenas as imagens das partidas entre Fla e Vasco nos dois triangulares. E um pequeno documentário editado anos depois com a assinatura do "Canal 100", que na época existia com o nome de "Líder Cinematográfica". Está no YouTube, em cópia muito escura. Os jogos foram à noite, as lentes do cinejornalismo ainda eram precárias, e não dá para ver muita coisa além de alguns dribles de Babá e Sabará, os dois pontas, que tiveram a sorte de correr próximos das câmeras. Os fotógrafos de jornal ficavam atrás do gol e, quando algum atacante entrava na grande área, disparavam seus flashes, ficando ainda mais impossível se ver qualquer coisa.

Foi um ano vascaíno. O clube começou a temporada em fevereiro vencendo o Torneio Rio-São Paulo, e olhe que um dos participantes era o Santos, com Zito, Dorval, Jair da Rosa Pinto, Pagão, Pelé e Pepe — e olhe ainda que um dos jogos desse torneio terminou com esse ataque fabuloso cravando 7 a 6 sobre o Palmeiras. Depois veio a vitória no Torneio Início que, como o nome diz, abria o Campeonato Carioca. Num só dia reuniam-se no Maracanã, a partir do meio-dia, todos os clubes (eram 12, além dos grandes, os pequenos São Cristóvão, América, Bonsucesso, Olaria, Madureira, Canto do Rio, Bangu e Portuguesa). Disputava-se um mata-mata com partidas de 20 minutos e, se terminadas empatadas, decididas nos pênaltis (o caso de 1958, com toda a série de cinco penalidades batida por um único jogador) ou na exótica contabilidade do número de escanteios (até o início da década de 1950).

Quando começou o Campeonato Carioca, o Vasco disparou na frente, mesmo sem seu maior goleador, Vavá, o "Peito de Aço", que no final de agosto foi negociado com o Atlético de Madrid (outro campeão do mundo que saiu do Rio logo após os primeiros jogos do estadual foi Joel, do Flamengo, vendido para o Valencia). Os demais craques da seleção continuaram por aqui, e pode-se ver os duelos de Garrincha contra seus infelizes marcadores: o rubro-negro Jordan, que se orgulhava de não bater nem segurar a camisa de Mané, e o vascaíno Coronel, um lateral sem essas preocupações de interessados em ganhar o Belford Duarte (o prêmio ao jogador menos faltoso da temporada). Ficou também no Rio o goleiro Castilho e sua "leiteria", nome que na época dava-se a pessoas de muita sorte. A propósito, os goleiros de 1958 também jogavam sem luvas.

TÍTULO COM O EMPATE EM 1 A 1

Foi há exatos 60 anos, no mais sensacional dos campeonatos cariocas, no tempo em que o juiz atuava assessorado por apenas dois bandeirinhas. Às vésperas dos jogos, eles eram escolhidos em comum acordo pelos próprios clubes, sendo que estavam à disposição nomes como Antonio Viug, Gualter Gama de Castro, Alberto da Gama Malcher e Airton Vieira de Morais, o popular Sansão, apelido que sua senhoria recebeu ao vencer um concurso nacional de queda de braço. A final foi dirigida por Eunápio de Queirós e, como memória dela, há também um áudio no YouTube. Nele, o locutor Waldir Amaral, da Rádio Continental ("ontem, hoje e sempre, a casa da notícia"), narra o gol de Roberto Pinto que abriu o placar da partida (dizia-se "match") e, mesmo com o gol de Babá no segundo tempo, permitiu o título ao Vasco. A Taça Eficiência, dada ao clube que alcançasse mais pontos na somatória dos campeonatos profissionais, aspirantes e juvenis também ficou com o Almirante, que era como O GLOBO, por causa da caravela no escudo, chamava o campeão.

Na véspera do jogo, o jornal teve acesso à concentração dos dois times. Na do Vasco, fotografou o momento em que Almir "Pernambuquinho" tenta dar um susto em Pinga mostrando-lhe uma cobra, mas fracassa porque o ponta-esquerda percebe antes que ela já estava morta. No Flamengo, uma legenda brinca com a foto premonitória do zagueiro Pavão segurando um abacaxi — e não deu outra.

Num jogo sensacional ("Obrigado, futebol", escreveu Ricardo Serran, que fez a crônica do jogo para O GLOBO), o "Gigante da Colina", outro epíteto para identificar o esquadrão de São Januário, levou o título com direito à imediata colocação das faixas. Na foto clássica do time, os jogadores do ataque aparecem agachados, de cócoras, uma formação hoje abolida pela necessidade de todos ficarem ligeiramente erguidos e permitir que os fotógrafos registrem na camisa a marca do novo craque, o patrocinador.



Fonte: O Globo