Friedenreich, Leônidas, Pelé, Garrincha, Marta, Neymar. A história do futebol brasileiro foi construída dentro de campo, majoritariamente, pelos pés de atletas negros. Nos cargos de liderança do esporte, no entanto, a situação é bastante diferente. Nenhum dos 40 presidentes dos clubes das Séries A e B foi considerado negro, de acordo com levantamento do GloboEsporte.com.
A análise foi feita através da chamada heteroclassificação, método no qual fotos dos mandatários foram submetidas à avaliação dos pesquisadores Marcelo Carvalho, Marcel Diego Tonini e Ricardo Pinto dos Santos, a pedido da reportagem.
- Quem faz o espetáculo é o negro, mas quem comanda não é ele. É uma reflexão importante a ser feita. Costumo dizer que a injúria racial é a ponta do iceberg. É a parte visível. Existe essa outra parte invisível que é a não presença dos negros nos cargos de comando e de treinadores. É um racismo institucional, que a gente tem também fora do futebol, e se acostumou a ver a ponto de achar normal - declarou Marcelo Carvalho, diretor do Observatório de Discriminação Racial no Futebol.
Como (tentar) explicar o fenômeno?
Para efeito de comparação, o globoesporte.com separou alguns índices da população negra (confira no gráfico abaixo). Mesmo correspondendo a mais da metade dos habitantes do Brasil (53,6%), apenas 17,8% dos mais ricos do país são negros.
Por outro lado, ocupam a maior parcela dos presos (61,7%) e são maioria esmagadora entre as pessoas com menores rendimentos: a cada quatro pessoas da camada mais pobre brasileira, três são negras. Para o historiador Ricardo Pinto dos Santos, os índices traduzem desigualdade no Brasil.
- É um reflexo da sociedade. Não somente quanto à presidência e diretoria, mas também técnicos e comissão. É muito difícil encontrar negros. Quase sempre estão ligados aos cargos mais baixos, porque efetivamente têm pouco acesso à educação, pouco acesso a essa dinâmica de dirigentes, então um grupo que vem historicamente à margem de uma boa educação e de uma estrutura que possibilite alcançar esses cargos, não é à toa que há um reflexo disso na ocupação que essas pessoas têm dentro dos clubes - declarou.
O cientista social Marcel Tonini destaca que por haver um elo intrínseco entre as relações de classe e raça, os negros recebem menos oportunidades e são os principais excluídos dos altos cargos no futebol brasileiro.
- Os dirigentes compõem um espaço de controle político e econômico da estrutura do futebol. É extremamente excludente. Para ser dirigente, é preciso ter relações dentro dos clubes, o que na verdade exige que você tenha uma classe social alta e faça parte do clube há anos. É até geracional. No Vasco, por exemplo, tem o Eurico e o Euriquinho. Não é incomum. Isso se repete na maioria dos clubes.
Primeiro presidente negro
O Vasco foi o primeiro clube a eleger um presidente negro. Cândido José de Araújo, chegou ao cargo em 1904, foi reeleito e ficou até 1906. Foi durante do mandato de Cândido que o Cruz-Maltino conquistou o primeiro título de remo. O historiador Ricardo Pinto chama atenção para o fato de a eleição do mandatário em questão não representar obrigatoriamente um progresso para a categoria.
- Não é só a uma condição de negro, mas a que negro estamos nos referindo. Cândido era um negro com posses, estudado, então nem sempre a condição de negro traz uma ausência de racismo. O racismo transcende esta condição. Você pode ter um presidente negro que não traga efetivamente nenhum avanço para o acolhimento dos negros das camadas populares, por exemplo - disse o pesquisador.
Já Marcelo Carvalho atenta para o caráter esporádico da presença de negros na presidência de clubes da elite do futebol nacional.
- São casos sempre pontuais. A gente puxa na memória e encontra um ou outro. São sempre exceções. Não sei se todos os principais clubes do Brasil já tiveram pelo menos um presidente negro.
Conscientização dos clubes precisa ser efetiva
A posição das equipes brasileiras não foi apontada pelos pesquisadores como a ideal para acabar com a desigualdade estrutural. Tonini acredita que as campanhas de conscientização dos clubes deveriam seguir uma lógica menos subjetiva e mais efetiva, com ações internas e incentivo à participação de negros nos cargos.
- As campanhas são absolutamente protocolares. O que mostra preocupação é olhar para a própria estrutura e ver quantos seguranças e massagistas, por exemplo, são negros
Nos cargos mais baixos tem um monte. Subindo na hierarquia só vai embranquecer o quadro. Poderiam estabelecer uma cota para que ex-jogadores tivessem oportunidade dentro do clube. O que eles fazem é só um "cala boca". Os clubes precisavam encarar francamente uma ação interna e criar ações coletivas, como boicotar partidas em locais com ocorrências. Teria um efeito muito mais positivo.
Para o secretário nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Juvenal Araújo Júnior, é necessário que o racismo seja discutido pelos clubes para ser combatido, incluindo na esfera institucional.
- A cúpula dos clubes de futebol reflete o racismo existente na sociedade de maioria negra, mas essa maioria se torna uma minoria quando se trata de uma representação de poder no Brasil. Os clubes de futebol precisam colocar o tema racial em pauta e observar a necessidade da representatividade dos torcedores do País, que são majoritariamente negros. A conscientização da existência do racismo precisa ser urgente para que ele seja combatido também internamente.
Fonte: GloboEsporte.com