Em 2011, São Januário foi eleito em reportagem do jornal inglês "Daily Telegraph" um dos cinco estádios mais hostis do mundo. O Vasco e sua torcida, especialmente, gostaram do título, forte, mas também perigoso. Porque levanta as questões: território hostil para quem? Para quê? Onde está a linha tênue que separa a hostilidade no sentido figurado do ato de agredir, fisica ou psicologicamente o outro? Em setembro, completo dez anos como repórter esportivo contratado e passei sete deles como setorista de Vasco. Nunca foi tão ruim estar no estádio quanto na noite de sábado, para quase todos os presentes.
Meu dia de trabalho começou do lado de fora de São Januário, por volta das 16h30. Fui para o lado reservado para a torcida visitante para acompanhar como estava o clima no lado do Flamengo. Um forte aparato de segurança manteve a ordem. Quatro barreiras da polícia militar mantiveram os torcedores rubro-negros a uma distância segura dos vascaínos. Presenciei um torcedor se aproximar de um grupo de policiais para agradecer pelo tratamento que estavam recebendo. Consultei outros rubro-negros que avaliaram positivamente a escolta que a polícia fez da torcida até o estádio. Um colega de imprensa passou por mim e disse: "Se o Vasco perder, vai ter confusão".
A menos de uma hora para o começo da partida, entrei no estádio. No caminho até a área reservada pela imprensa, é preciso passar pelo meio da torcida visitante. Presenciei diferenças em relação ao último clássico Vasco x Flamengo no estádio: uma lanchonete improvisada foi montada e banheiros químicos se juntaram ao do setor. Na porta dele, quatro seguranças do Vasco tentavam conter atos de vandalismo. Entrei para ver como estava lá dentro e ouvi um torcedor rubro-negro dizer "quebra isso aí" em uma das cabines.
Em seguida, cheguei até os camarotes da imprensa. Foram reservados para os repórteres cabines bem acima de onde tradicionalmente se posicionam as duas principais torcidas organizadas do Vasco: a Força Jovem, que está teoricamente proibida de ir aos estádios, mas segue presente sem as camisas e bandeiras que a caracterizam, e a Ira Jovem, dissidência da Força.
A partida começou e já no primeiro tempo vários focos de confusão surgiram na arquibancada. Policiais militares correram de um lado para o outro, ao lado de seguranças contratados pelo clube, para conter as cenas de agressão entre torcedores do mesmo time. No intervalo da partida, desci até o Juizado Especial Criminal para saber quantos torcedores haviam sido detidos. Em conversa com o delegado da partida, ele me relatou que cinco pessoas, todas da torcida do Vasco, haviam sido levadas para o Jecrim. Nenhuma por causa das confusões que eu havia presenciado.
Depois disso, voltei para acompanhar o segundo tempo e as brigas continuaram a acontecer. Eu tentava entender o motivo. É sabido por todos que muitos conflitos nas arquibancadas de São Januário este ano acontecem depois que alguns torcedores tentam reprimir violentamente outros que gritam contra o presidente Eurico Miranda. Entretanto, dentro de São Januário das 17h às 21h, não ouvi nenhum coro de "Fora Eurico".
É verdade que também não havia tantos cantos de apoio ao time como é de praxe em dias de Colina lotada. A tensão no estádio era enorme e só aumentou depois que o gol de Yago Pikachu foi anulado por causa de uma falta cometida por Luis Fabiano no começo da jogada. Um torcedor pulou a proteção de vidro que separa a arquibancada do gramado e foi prontamente contido por seguranças. Outros três ameaçaram fazer o mesmo, mas desistiram depois que policiais reforçaram a segurança naquele ponto.
Com o fim do jogo e a derrota para o Flamengo, tudo saiu do controle. Torcedores começaram a cantar gritos de guerra, com promessa de violência no caldeirão. Várias bombas foram arremessadas em direção à descida do vestiário, colocando policiais, funcionários do Vasco e profissionais da imprensa em perigo. Nem mesmo os jogadores do Vasco foram poupados. Torcedores usaram os bambus das bandeiras como armas. A polícia militar apareceu para conter a massa e policiais mulheres foram agredidas por vários torcedores, em clara desvantagem.
O uso da força por parte da polícia militar aumentou, com armas de borracha, bombas e spray de pimenta. Estes recursos não fazem distinção entre baderneiros, crianças, idosos ou mulheres. Um homem, desesperado, pediu para pular a janela e entrar na cabine de imprensa com sua namorada, aos prantos. Nós ajudamos a entrarem. Em seguida, um senhor idoso também foi colocado para dentro, mas sua família ficou do lado de fora. A aflição deles era saber como poderiam se reencontrar depois que tudo acabasse. Havia um medo grande de se perder de amigos e familiares.
Apesar do aviso de alguns colegas de imprensa, resolvi sair do camarote rumo à sala de entrevistas de São Januário. O corredor do setor estava lotado de torcedores e pude ver que outras cabines também foram tomadas por vascaínos que estavam acuados na arquibancada. Muitas mulheres choravam. Outras ficaram agachadas para tentar não inalar tanto spray de pimenta.
A esssa altura, meus olhos já estavam vermelhos e ardidos. Enquanto tentava descer, via do lado de fora o confronto entre policiais e torcedores. Os homens do Gepe, como em um cenário de guerra, se protegiam atrás de pilastras e atiravam bombas e tiros de borracha contra vascaínos que revidavam com tudo que viam pela frente: garrafas, pedras, pedaços de madeira, cadeiras e mesas de bares e quiosques. Até a churrasqueira do ambulante foi arremessada contra a polícia. Homens da cavalaria também tentavam dispersar os agressores. Foi nesse trajeto até o vestiário que ouvi tiros do lado de fora da Colina.
Já perto da sala de imprensa, vi que jogadores do Vasco esperavam ao lado de familiares, no vestiário, o fim dos conflitos para irem para casa. Martín Silva trazia com ele sua filha pequena e a esposa - eu já havia visto as duas no intervalo do jogo, no setor dos camarotes. Resolvi tirar uma foto da cena para publicar uma matéria a respeito em um setor que o Vasco solicita que imagens não sejam registradas - em dias de vitória, isso é bem mais flexível.
Foi quando fui abordado por seis seguranças da presidência. A ordem era para que eu deletasse a foto que eu havia tirado. Cercado por eles, deletei, mas em seguida houve a ordem para que eu apagasse todas as fotos do meu celular, o que incluia as fotos de tudo que testemunhei em São Januário naquele sábado. Eu me recusei e em seguida um deles tirou o telefone da minha mão, enquanto que outros dois me puxavam pelo braço para longe dali. Comecei a gritar pelo assessor de imprensa do Vasco, que me ajudasse. Ele prontamente apareceu. Tudo isso diante de várias pessoas.
Anderson Barros, gerente de futebol do Vasco, também surgiu por perto e pedi a ele que me ajudasse. Longe dos seguranças da presidência, que haviam tomado meu celular, um funcionário do clube tentava me acalmar. Em seguida, o assessor de imprensa trouxe meu aparelho, sem que mais nenhuma foto tivesse sido deletada. Mais tarde, por telefone, houve um pedido de desculpas por parte do assessor.
Fonte: Extra Online