Quebrada a invencibilidade inglesa
Vasco 1x0 Arsenal (Amistoso 1949)
Baseado nos artigos publicados nas revistas Esporte Ilustrado de 2/6/1949 e Globo Sportivo de 27/5/1949.
Na noite de 25 de maio de 1949, uma quarta-feira, São Januário recebeu o maior público de sua história, no amistoso entre o Vasco e o Arsenal. Haviam vários motivos para tanto interesse.
O famoso clube londrino, um dos mais tradicionais e populares da Inglaterra, fundado em 1886 e várias vezes campeão inglês, havia se sagrado mais uma vez campeão na temporada de 1947/48 e era exaltado como um dos melhores times do mundo. Nunca antes um clube tão poderoso e respeitado do velho continente tinha feito uma excursão ao Brasil, quanto mais da Inglaterra, que tinha a aura de inventora do futebol. É verdade que várias equipes inglesas já tinham visitado o Brasil, mas quase todas eram ou compostas de tripulações de navios ingleses (que no princípio do século XX costumavam aplicar goleadas homéricas nos times brasileiros), combinados amadores, ou, no máximo, clubes de segunda divisão para baixo. O próprio Vasco, em 1948, já havia derrotado o Southampton, que na época disputava a segunda divisão inglesa, por 2x1, em São Januário. Mas nenhuma daquelas equipes chegava perto do calibre do Arsenal e não causaram a menor sensação.
Hoje em dia chega a ser difícil imaginar a mística que o futebol inglês ainda conservava naquela época - em grande parte fomentada pela arrogância dos próprios ingleses, que se consideravam os donos do futebol e tão superiores aos adversários, que esnobavam as Copas do Mundo. Havia no Brasil um encantamento pelo futebol inglês que Nélson Rodrigues atribuía sarcasticamente ao "complexo de vira-lata do brasileiro". Essa admiração excessiva foi inicialmente reforçada pelas atuações convincentes do Arsenal, que apos três partidas em gramados brasileiros permanecia invicto: Em São Paulo, o Corinthians saiu derrotado e o Palmeiras alcançou um empate a duras penas. No Rio, o Fluminense, reforçado por alguns jogadores do Botafogo, foi goleado até com uma certa facilidade, numa partida em que o Arsenal mostrou que, além de uma defesa sólida, também tinha poder de fogo.
Ainda restava ao Arsenal enfrentar o Vasco e o Flamengo. Em São Paulo e no Rio, multidões tinham lotado os estádios nas apresentações anteriores dos "Gunners", e não poderia ser diferente em São Januário, agora que passava a ser questionado se alguma equipe seria capaz de se desforrar, quebrando a invencibilidade inglesa. E se algum time no mundo tinha condições de realizar tal façanha, esse time era o fabuloso Expresso da Vitória, que vivia a encher a torcida vascaína de orgulho. Ainda mais que o Vasco aproveitaria o amistoso para promover a estreia da sua mais recente contratação, o extraordinário porém temperamental Heleno de Freitas, de volta ao Brasil depois de uma temporada no Boca Juniors.
Além disso, os comentaristas e analistas de futebol previam um duelo de esquemas táticos: O Arsenal ainda utilizava o mesmo sistema WM que havia sido criado lá mesmo,em 1925, pelo seu afamado técnico Herbert Chapman, falecido prematuramente em 1934. Já o futebol brasileiro, até os anos 40, era considerado taticamente atrasado, pois o WM nunca chegara a emplacar no Brasil. Foi Flávio Costa, técnico da Seleção, e naquele momento também do Vasco, que começou a implantar uma variante do WM que recebeu o nome de "diagonal".
Por tudo isso, a partida entre Vasco e Arsenal foi cercada de uma expectativa enorme, adquirindo até um sabor de decisão de mundial de clubes, pois, no ano anterior, o Vasco havia conquistado o título de campeão sul-americano invicto.
A imprensa da época estimou o público que compareceu a São Januário em torno de 60 mil. Nem em partidas da Seleção tinha-se visto o então maior estádio do Brasil tão apinhado de gente. Para que se tenha uma ideia, o recorde oficial de público de São Januário é de 40.209, ocorrido em 19/2/1978, no jogo Vasco 0 x 2 Londrina. Curiosamente, naquela partida contra o Arsenal, segundo o registro oficial (para inglês ver?), houve apenas pouco mais de 24 mil pagantes e sócios, mas que proporcionaram a renda de Cr$ 1.146.150,00, recorde sul-americano na época.
O Vasco (JPEG, 63k) entrou em campo com uma das formações mais fortes da sua história: Barbosa, Augusto e Sampaio; Eli, Danilo e Jorge; Nestor, Maneca, Ademir, Ipojucan e Tuta. No decorrer da partida, o estreante Heleno e Mário substituíram respectivamente a Ipojucan e Tuta. Com a entrada de Heleno, o técnico Flávio Costa promovia uma alteração tática no ataque: Ademir foi exercer a função de ponta-de-lança pelo lado direito, Maneca foi armar o jogo pela meia-esquerda no lugar de Ipojucan, e a posição de centroavante foi ocupada por Heleno.
O Arsenal (JPEG, 65k) formou com Swindin, Barnes e Smith; Macauley, Daniel e Forbes; McPherson, Logie, Rooke, Lishman e Vallance. Ainda no primeiro tempo, o manager Tom Whittaker colocou Fields em substituição a Daniel.
O juiz foi o ingles Mr. Barrick, que teve atuação regular segundo a revista Esporte Ilustrado, auxiliado pelos brasileiros Mário Vianna e Alberto da Gama Malcher.
Este trecho da reportagem publicada na revista Globo Sportivo descreve como foi o jogo e o lance do gol da vitória cruzmaltina, marcado por Nestor:
O Vasco, depois da estreia, era o indicado como o mais capaz para uma vitória
sobre os ingleses. Por isso, o jogo levou uma multidão ao Estádio de São Januário.
Nervosos, visivelmente emocionados pela sorte que esperava o seu clube favorito.
O Vasco esteve bem, atacou mais e não se intimidou com o cartaz dos ingleses.
Seus jogadores entraram em campo certos de que poderiam vencer o poderoso
Arsenal, a melhor equipe da Inglaterra e uma das melhores do mundo.
O Vasco começou melhor, mas o Arsenal equilibrou. Com as mudanças de Tuta e
Ipojucan por Mário e Heleno de Freitas, o Vasco ficou com a ofensiva com
mais objetividade. Com o Vasco mandando em campo, terminou o primeiro em 0x0.
O segundo tempo não mudou muito. O Vasco continuou melhor, com o Arsenal
procurando equilibrar o jogo no meio campo. Somente aos 33 minutos é que o
estádio explodiu com o gol de Nestor. Um centro de Mário da esquerda que cruzou
toda área inglesa sem que o goleiro Swindin conseguisse cortar. Nestor chutou
de primeira não dando chance para a defesa inglesa. A vitória foi justa e foi
comemorada com entusiasmo, principalmente porque quebrou a invencibilidade do
Arsenal.
Já a revista Esporte Ilustrado anotou o gol de Nestor aos 38 minutos. Na foto (JPEG, 35k), publicada pela mesma revista, Nestor (camisa 7) está sendo abracado por Heleno, enquanto Ademir, Maneca, Augusto e Danilo se aproximam para comemorar a marcação do tento, que acabou dando ao Vasco a vitória histórica sobre o decantado futebol inglês.
Outros confrontos entre Vasco e Arsenal
Vasco e Arsenal se enfrentaram mais duas vezes ao longo da história, e o Vasco permanece invicto. O segundo confronto aconteceu durante outra excursão do Arsenal ao Brasil, em 1951. O Arsenal continuava sendo um dos clubes ingleses mais fortes e trazia na sua bagagem o título da Copa Inglesa (a tradicional FA Cup) de 1950. Não obstante, o Vasco conseguiu aplicar um retumbante 4 a 0, no Maracanã, com gols de Dejair, Tesourinha, Ademir e Friaça. O terceiro confronto ocorreu durante o Torneio de Belgrado, em 1980. Por coincidência, o Arsenal tinha conquistado a Copa Inglesa um ano antes, além de ter sido sido vice-campeão da Copa dos Vencedores de Copas Europeias de 1980, porém foi mais uma vez derrotado, dessa vez por 2 a 1, gols de Paulo César Lima e Roberto para o Vasco.