Um Chaplin imprevisível
Divulgação
Djalma Santos, Pelé e Garrincha festejam gol na Copa de 58
JUCA KFOURI
Colunista da Folha
22/10/1995
Entre as lendas e as verdades que envolvem o jogador de futebol Mané
Garrincha, fico só com o que vi, ainda menino, ninguém me
contou.
Certa vez, por sinal, Arnaldo Jabor disse que entre Pelé e Garrincha,
o brasileiro ficava com o segundo, porque gostamos mais dos derrotados
que dos vitoriosos. Se a conclusão é sábia, como costumam
ser sábias as conclusões de Jabor, a premissa é discutível.
Porque se, de fato, Garrincha perdeu para a vida, dentro de campo, com
a bola nos pés, foi um dos grandes vitoriosos da história
do futebol mundial -por mais, aliás, que o mundo estranhamente não
o reverencie como tal.
Tento resistir à tentação de comparar Mané
e Pelé. O Rei é o Rei e só os ``outristas´´,
genial criação de Luís Fernando Veríssimo para
definir aquele tipo de gente que nunca admite o óbvio, insistem
em inventar alguém que tenha sido melhor que ele. (``Ah, tem o irmão
de um colega meu de ginásio que batia uma bola muito mais redonda
que a dele...´´).
Mas não resisto. Garrincha tinha uma característica que nem
Pelé teve. Enquanto Pelé deixava as platéias boquiabertas,
surpresas, admiradas por onde passava, Garrincha fazia o estádio
rir, gargalhar até. Daí ser a ``Alegria do Povo´´.
Garrincha era Chaplin, já se disse, Pelé era Spielberg -talvez
uma impropriedade que Jabor não cometeria.
E Garrincha foi capaz de uma façanha que só Diego Maradona,
24 anos depois, igualou. Garrincha ganhou sozinho uma Copa do Mundo, a
de 1962, no Chile. Então, com Pelé fora de combate a partir
do segundo jogo, vítima de uma traiçoeira distensão
na virilha que doeu no Brasil inteiro, Mané tomou todas as dores
e revelou aptidões até então desconhecidas. Comandou
um timaço já envelhecido e fez de tudo bastante. Marcou gol
de falta, de pé esquerdo, de cabeça. Serviu Amarildo, serviu
Vavá, aí sim, como já fizera em 1958 na conquista
da Suécia. Foi o homem esquadra, ele que estava acostumado a se
divertir solitário pela faixa direita do gramado. No Chile, não.
Jogou pela direita, demais, pela esquerda, o suficiente, pelo meio, como
um mestre. Tomou para si a tarefa sobre-humana de levar o Brasil ao bicampeonato.
Já que o super-homem não estava, Carlitos faria os dois papéis.
E como fez!
Fez mais, muito mais. Romantismo à parte, porque foi contemporâneo
da arte, mas também do pragmatismo eficaz de Pelé, Garrincha
perdoava seus marcadores, por mais violentos que fossem. Se o Rei, em legítima
defesa, chegou a tirar alguns de campo devidamente quebrados, Garrincha
os consolava.
Houve um Botafogo e Santos, no Pacaembu, particularmente inesquecível.
Garrincha pegava a bola e partia para cima do lateral Dalmo. Ia caminhando,
bola presa aos pés. E Dalmo ia recuando, perplexo, quase paralisado
de pavor. Quando Garrincha ensaiava o corte, que todos sabiam que daria
e ninguém conseguia neutralizar, Dalmo não tinha dúvida:
soltava o sarrafo, e Garrincha desabava no gramado. Tantas vezes a cena
se repetiu que o árbitro foi obrigado a expulsar o santista. Já
no caminho para o vestiário, Dalmo sentiu uma mão em seu
ombro. A mão de Garrincha, que havia se desvencilhado do massagista,
levantado e acompanhado o zagueiro até o primeiro degrau da escadaria
que o conduziria para o chuveiro mais cedo, ainda no primeiro tempo. Era
como se repetisse a famosa frase de Nelson Rodrigues, outro gênio
brasileiro brilhantemente biografado por Ruy Castro. ``Me perdoe por me
traíres.´´
Na constelação dos deuses do futebol, e, insisto, por mais
que estranhamente não haja tal reconhecimento fora do Brasil, dois
jogadores são únicos, inigualáveis, incomparáveis.
Pelé e Mané, Mané e Pelé. E olha que não
faltam raridades nessa constelação, de Domingos da Guia a
Nílton Santos, de Friedenreich a Maradona, de Leônidas da
Silva a Rivelino, de Didi a Cruyff, de Beckembauer a Falcão, de
Tostão a Gérson e bote foras de série nisso.
Finalmente, mais uma historinha, dessas que ninguém contou, que
eu vi. O Brasil acompanhou a Copa de 1962 ainda pelo rádio e, um,
dois dias depois de cada jogo, o teipe chegava de avião e era mostrado
na TV. Na partida contra a Espanha, a primeira sem Pelé, o Brasil
perdia já no segundo tempo por 1 a 0 e seria eliminado nas oitavas-de-final.
Garrincha recebe na direita e dribla uma vez seu marcador. Espera que ele
volte e dribla de novo. O locutor se desespera. ``O Garrincha não
passa a bola!´´. Mais uma finta, agora chega um segundo marcador
que também é driblado. O locutor vai à loucura. ``Mas
o Brasil está perdendo, o Garrincha prende demais a bola, o que
ele quer?!´´.
Garrincha começa a última sessão de dribles, se livra
dos dois marcadores e centra... E o locutor, com voz de choro, desesperado,
irritação indisfarçável. ``O Garrincha, o Garrincha...
Goooolllll. Gooollll do Brasil. Amarildo!!!!´´.
Garincha driblara, driblara, driblara e driblara um pouco mais. Esperava
alguém entrar na grande área. Aí, Amarildo chegou...
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